Não, eu não ia escrever sobre isso. Até porque acredito que
existem coisas que, quanto mais se falam, mais quem as causou atinge o seu
objetivo, que é o de ganhar visibilidade e legitimar os seus dogmas junto ao
seu eleitorado. Mas também acredito que existem coisas que, se não forem
faladas, é como o ovo de uma serpente: é possível ver crescendo lá dentro uma
víbora que pode ser fatal.
Colocando ambas na balança, achei melhor tratar do assunto,
mesmo uma semana após o seu ápice.
“Não estupro você porque não merece.”
Essa frase foi dita
por um parlamentar democraticamente eleito pelo Estado do Rio de Janeiro a uma
colega de Congresso. E, sinceramente, eu não tinha dúvidas de que ele seria
reeleito no último pleito. Talvez não tivesse a noção da quantidade de votos
que ele alcançaria – comparável à quantidade que Luciana Genro (PSOL) teve em
todo o país para a Presidência. E hoje não esperava que uma busca em seu nome
no Google já apareça o termo “Presidente” como um dos mais associados.
Poderia dissertar aqui sobre o fato de ele dizer que alguém
só é gay porque faltou porrada do pai e da mãe; ou de depreciar negros; ou de
desrespeitar a Presidente da República. Mas vou me ater somente à sua apologia
ao estupro. Um homem que se diz ao lado da Lei (e de fato, é um legislador),
que defende a Polícia e as Forças Armadas, dizer que não cometeria um crime
porque a sua potencial vítima não merece.
Pra não parecer que é um manifesto a respeito do deputado,
vou aqui fazer um aparte e dizer que bola fora no mesmo sentido cometeu o
Maroon 5, na figura do seu líder e treinador do The Voice dos EUA, Adam Levine –
dos quais eu sou fã. A apologia de um homem com tipão de psycho perseguir uma
mulher bonita, com direito a vísceras cruas de animais e literal banho de
sangue no clipe da música Animals (que ainda sugere canibalismo em sua letra)
definitivamente não é algo legal. Embora não seja o representante de parte de
uma população em um Congresso, trata-se de figuras públicas, que têm a admiração
e influenciam milhares de pessoas.
Eu não sou mulher. E, sinceramente, não desejaria ser. Não
nessa sociedade na qual elas (ainda, mesmo após anos de lutas e conquistas) são
subjugadas.
O deputado, na verdade, nada mais é do que reflexo dessa
sociedade, que vota nele e em que tais: mais do que machista, vivemos em uma
sociedade falocêntrica e falocrática. Sim, meus caros, falo do falo. O pênis. A
arma mais invasiva que o cara lá de cima inventou. E junto com ela, vem um
corpo que geralmente costuma ser mais forte e cheio de hormônios que elevam a
libido do que o do sexo oposto. Pimba! Combinação perfeita para se achar no
direito de violar alguém mais frágil.
Eu não sou mulher. Mas sei bem que um dos maiores pesadelos femininos
é ser perseguida e violentada. Não existe mulher que não tenha passado por uma
situação de medo, sozinha, em que não achou que poderia ser atacada. Se nós,
homens, já tememos em alguma situação sermos assaltados ou agredidos, imagina
para elas que o combo ainda vem com a concreta possibilidade de um estupro. A
não ser que não mereça, na cabeça do parlamentar...
Eu não sou mulher. Porém, já vi as (diversas) vezes em que
minha irmã foi assediada na adolescência e juventude; as piadinhas que minha
mãe já ouviu, inclusive na minha frente, principalmente quando esteve separada
do meu pai; a vez em que a minha avó (sim, avó), já sexagenária, foi abordada
por um taxista que se masturbava. Presenciei os olhares lascivos de
desconhecidos para amigas na rua, sem a menor cerimônia de elas estarem
acompanhadas, simplesmente porque é direito inerente ao homem comentar e
externar o seu desejo pela mulher que expõe a sua figura na Medina; mais do que
direito, é uma obrigação, pois é um selo de macheza, um atestado de virilidade
dos quais os homens são cobrados desde a mais tenra infância, quando os pais
dão as primeiras Playboys para os meninos de cinco, seis anos de idade, ainda
despidos de sexualidade, e esperam que eles demonstrem suas excitações com
aqueles “aviões” desnudos. Estimulam que eles mexam mesmo nos seus “pintinhos”,
botem pra fora pra urinarem na rua porque “é somente uma criança” e já avisam
aos amigos: “prendam as cabras que o meu bode tá solto”. Afinal, qual é a
primeira coisa que avisam no ultrassom quando descobrem que o bebê é um menino?
“Olha ali o pintão e o sacão dele”. E a menina? Não tem uma vagina? Ou é apenas
ausência do pênis que a identifica?
Eu não sou mulher. Mas não sou ingênuo ao ponto de achar que
elas também não sentem desejo por homens que vejam na rua. E que nem por isso
precisam soltar um “Gostoso”, “Ai se eu te pego” ou um “Ô, lá em casa!” para
terem certeza do seu desejo. Até porque, se o fizessem, seriam tachadas de
vulgares e galinhas. Afinal, é um dever inerente da mulher ser recatada – pelo menos
daquelas que são eleitas para serem mães de família, que para muitos não
necessariamente são as mesmas para se ter aquele sexo de dar inveja aos filmes
pornô.
Por falar em pornografia, essa é mais um sintoma do
falocentrismo em que vivemos. Nas películas hétero, mesmo sendo as atrizes
aquelas que encabeçam os elencos, os astros principais são os falos. O mesmo
vale para os filmes gays, até mesmo de forma mais intensa. O ativo sempre
domina o passivo, quase que numa obrigação do outro em ser penetrado por aquele
se mostrou mais forte, mais agressivo. Mais homem. Porque dele é o falo que
penetra. Se tiver demonstração de dor da mulher ou do passivo, melhor ainda.
Humilhações verbais, pequenas agressões físicas... Tudo faz parte desse
universo, que só reflete aquilo que nós, do lado de cá das telas, consumimos.
Essa mesma falocracia é a que faz, muitas vezes,
encontrarmos quem até entenda um relacionamento entre dois homens, mas não
entre duas mulheres. Eu mesmo já ouvi que seria “pouca vergonha”. Ou mesmo,
falta de p!c@: “Não comeram direito... Se fosse eu, entrava ali no meio e
resolvia a parada”. Como se uma relação fosse sustentada em centímetros de
ereção e não no sentimento, na atração. Afinal, um homem com duas mulheres é um
sonho. Se for uma mulher com dois homens, só pode ser uma “festinha” que um dos
homens permitiu. “Mas eu nem olhei direito o cara”, “a gente nem se encostou”
ou “teve horas que deu até um nojo do cara ali do lado” sempre têm que aparecer.
Afinal, como não pode um falo reinar sozinho?
Por isso, depois da infeliz declaração do deputado, ainda
somos obrigados a vermos aqueles que o defendem avançarem na agressão ao
escreverem que Maria do Rosário não merecia ser estuprada porque, além de tudo,
“com essa cara horrorosa, nem com Viagra”. Nada é tão ruim que não possa
piorar...
Nunca haverá uma unanimidade. Nunca viveremos em Utopia ou
Pasárgada. Nunca teremos todos pensando da mesma forma e com bom senso – até porque,
como aprendi, bom senso é a opinião de uma pessoa que pensa parecido com a
gente.
Não sei se precisamos apenas de uma mudança de comportamento
que passe pela educação. Ou que passe pela punição penal rígida. Fato é que
desde muitas tradições tribais, atravessando as Roma e Grécia pré-cristãs, o
falo reina. Na verdade, o problema não está no falo, evidentemente: afinal uma
faca é apenas uma faca; mas quem a emprega pode usá-la pra passar manteiga ou
pra matar alguém.
Por favor, homens: urinem e façam muito sexo com suas
respectivas armas. Masturbem-se. Coloquem piercing, tatuem, vistam cueca de
elefantinho. Façam o que quiserem. Mas nunca se achem no direito de penetrar
alguém que não o queira.
Votar no tal deputado, por mais mau gosto que possa
ser, é um direito garantido constitucionalmente e diz respeito ao livre-arbítrio
de se ver representado. Mas estuprar, não importa em que condições ou
circunstâncias, é crime. Hediondo.
![]() |
|
Paulo Henrique Brazão, nosso colunista oficial das quartas-feiras, é niteroiense, jornalista e autor do livro Desilusões, Devaneios e Outras Sentimentalidades. Recém chegado à casa dos 30 anos, não abre mão de uma boa conversa e da companhia dos bons amigos.
|
|
![]() ![]() |
Um comentário:
Seu texto merece ser ovacionado em pé! Parabéns!
Postar um comentário