Mesmo enquanto ainda se contava o total de corpos, o massacre
ocorrido na redação da revista satírica francesa Charlie Hebdo na última semana
já havia passado por seu julgamento e tido o seu réu definido: a religião. Dois
homens encapuzados mataram a sangue frio doze profissionais da publicação, a
maioria deles cartunistas renomados, supostamente em retaliação a charges do
profeta Maomé consideradas desrespeitosas por correntes extremistas islâmicas. No
dia seguinte, três templos muçulmanos na França já haviam sido atingidos em
retaliação da população.
Faço aqui uma observação de que nunca acompanhei a revista a fundo e, pessoalmente, achei de mau gosto as poucas imagens às quais tive acesso. Ainda assim, sua liberdade de expressão é legítima e, se alguém se sentisse ofendido, que recorresse aos canais legais para isso.
Por isso, o ataque à redação me ofendeu triplamente: como cidadão, como
jornalista e também como religioso. Definitivamente, a religião não está na raiz desse
crime; talvez possa ser o caule ou os galhos dessa pavorosa árvore. Sua raiz é
o ódio humano e a sensação de que a vida de outra pessoa é menos preciosa do
que os seus valores, sejam eles religiosos ou não.
O termo religião vem do latim e quer dizer “religação”. É
você se conectar novamente com algo do qual foi separado – o Alto, o Além, o
Astral; como quiserem. Surgiu basicamente com um culto aos ancestrais que já morreram
– e que a humanidade, desde que o mundo é mundo, tenta descobrir para onde vão.
Hoje, está pulverizada em diversos cultos, desde aqueles que mobilizam centenas
de milhões de pessoas (como a católica, a muçulmana, a judaica, a budista,
hinduísta, entre outras) até as com menos adeptos e mais customizadas a crenças
mais locais (espírita, umbandista, candomblecista, evangélicas neopentecostais,
xamanista, cientificista, etc). Em um censo realizado nos EUA, houve um grande
número de pessoas que apontou serem adeptas da religião Jedi. Cada um atinge o
seu Deus como quer, seja ele Alá, Javé, Jeová, Tupã, Zambi, Brahma, Odin,
Júpiter, Zeus ou Mestre Yoda.
Maomé, Moisés, Cristo, Buda ou qualquer outro grande líder
messiânico não tinha religião. Pelo menos não as que se estruturaram em torno
deles séculos depois de suas passagens pela Terra. As religiões são criações
humanas e não divinas, acredite ou não em Deus. E como tais, são passíveis de
falhas. E como tais, podem ser utilizadas para fins que estariam acima da lei
dos homens (na cabeça de cada um) pois é em nome d’Ele.
Uma vez, o físico Steve Weinberg disse que “com ou sem
religião, pessoas boas farão coisas boas e pessoas más farão coisas más. Porém,
para que uma pessoa boa faça uma coisa má, é preciso religião”. Concordo com a
primeira, mas discordo completamente da sua última frase; ou alguém não acha
perfeitamente crível que um exemplar jovem agnóstico não seria capaz de matar
sua companheira movida por uma questão passional? Ou que um pai imaculadamente
cristão não poderia fazer grandes atrocidades ao estuprador de sua filha, mesmo
quando Cristo disse para oferecer a outra face? Ou que uma ateia não seria capaz
de sair fugida de um atropelamento que causou sem prestar socorro com medo de
ser presa?
Culpar a religião por ato tão vil é superficial e
injusto com os bilhões de adeptos a uma. Como costumo frisar, uma faca pode ser
utilizada para passar manteiga ou para matar; o que determina isso é quem a
manipula. Em geral, uma pessoa escolhe uma crença por afinidade e espera dela
crescimento e evolução (deveria ser apenas moral e espiritual, mas muitos
buscam o material mesmo e isso é de cada um). Nela conhece pessoas afins,
muitas vezes estabelece laços que até mesmo culminam em uma família. Nenhuma
religião que se preze, incluindo a islâmica, prega o ódio contra o próximo.
Quem prega isso são os homens que as deturpam com seu fundamentalismo estagnado
no tempo e, na realidade, mal fundamentado. E não precisamos ir muito longe
para vermos casos atrozes que utilizam a religião como justificativa para
liberar o que de mais ignóbil há dentro do ser humano.
Depositar na crença do homem a responsabilidade por feitos
como esse seria um clássico caso em que o rabo abana o cachorro. E falando em
cachorros, religião e ódio, lembro o velho ditado xamânico: dentro de cada um
há dois cachorros. Um deles é cruel e mau. O outro é muito bom. Os dois estão sempre
brigando. O que ganha a briga é aquele que se alimenta mais frequentemente.
Nesse caso, o cachorro está solto, cada vez mais raivoso e é
de porte. Coitado do rabo.
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Paulo Henrique Brazão, nosso colunista oficial das quartas-feiras, é niteroiense, jornalista e autor do livro Desilusões, Devaneios e Outras Sentimentalidades. Recém chegado à casa dos 30 anos, não abre mão de uma boa conversa e da companhia dos bons amigos.
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