Eu tenho uma família. E isso ninguém me tira. Estou há dez
anos com o meu companheiro. Temos uma história tão legítima quanto à de
qualquer outro casal. Temos nossos dois cachorros, dois gatos e ainda
planejamos ter nossos filhos. Temos a bênção dos nossos pais e dos nossos
amigos. Temos sobrinhos de ambos os lados que nos tratam como tios. Nossa
família existe.
Infelizmente, o Legislativo de nosso país está querendo
regular o que seria família. E eu paro e penso: é sério isso? É sério que no
século XXI alguém se ache no direito de definir o que é família, ainda mais indo
de encontro à inclusão que toda e qualquer sociedade evoluída prega? Isso me
soa tão medieval!
Família sequer é algo que passa por laço sanguíneo. Embora
em sua grande maioria existam vínculos biológicos, o que tem de parentes que
têm vínculos apenas e totalmente pautados no sentimento é uma enormidade. E não
falo apenas de filhos adotivos, mas também de amigos que se agregam a famílias,
gente que cuida do rebento dos outros e acaba ficando muito mais responsável
por ela do que os próprios progenitores, o tio do primo do amigo que acaba
ficando muito mais próximo que o próprio primo ou amigo... A vida dessas
pessoas pertence a quem mesmo? A elas ou ao Legislativo?
Se a tal bancada evangélica é a responsável pelo projeto,
porque não acreditam então que os tais pecadores, sob sua ótica, devem prestar
contas ao seu Deus quando forem dessa pra melhor (ou pior)?
Sabemos que vivemos uma sociedade machista (aliás, mesmo
aqui no Barba Feita, já tratei da Falocracia, tema que também envolveu o
Congresso Nacional). Nossas instituições são reflexos de anos de pensamentos
retrógrados e de busca de um Estado paternalista e regulador ao extremo.
Infelizmente, em nosso país, um militar pode ganhar uma condecoração por matar
um homem, mas ser expulso de sua corporação por amar um. Infelizmente, não se
compreende que se um casal, independentemente de sua orientação sexual, resolve
adotar uma criança, é porque essa foi abandonada por dois heterossexuais que
não tiveram a responsabilidade de serem pais. Infelizmente...
Tenho diversos amigos com inúmeras formações familiares.
Pai, mãe, filho, filha, cachorro e papagaio. Pais e mães solteiros. Dois pais e
dois filhos. Dois pais e um filho com guarda compartilhada com uma mãe e outro
pai. Filhos adotivos. Filhos biológicos. Filhos afetivos. Casais que optaram
por não ter filho. É no mínimo cego o fato de os propositores de uma regulação
do que é família não perceberem a realidade à sua volta. Mesmo ainda afundado
em muitos conceitos antigos e conservadores, o Brasil mudou. Estão mesmo esses
legisladores representando o país? Ou puramente seus ideais pessoas e mesquinhos,
sob sua ótima umbiguista e egocêntrica (porque nem teocêntrica eu posso
considerar)?
Lembro até hoje de pequenas conquistas que me trouxeram
imensa alegria no passado: minha operadora de celular reconhece que somos uma
família há oito anos; a minha academia reconhece isso desde que nela
ingressamos, há quatro anos. O próprio censo brasileiro, em sua última edição,
me ouviu nesse sentido. São coisas banais, mas tão significativas para quem
passou anos de sua vida reprimindo ou ao menos omitindo algo – e que vive em
uma sociedade na qual teme dar um beijo ou até mesmo andar de mãos dadas em
público com seu amado para não ser agredido, seja física ou verbalmente.
Há pouco mais de três anos realizei meu casamento. Dentro de
uma instituição religiosa, com a presença de um representante do cartório que
fez as vezes de Juiz de Paz, com direito a festa animada depois, com centenas
de convidados. Assinei um documento que, embora não alterasse o meu Estado
Civil (àquela época, União Estável não poderia ser convertida em casamento), me
trazia uma série de garantias junto à pessoa que amo. Mesmo hoje em dia, quando
a união pode ser convertida, ainda opto por esperar do Legislativo uma decisão
definitiva sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo para realizar o processo
pelas vias convencionais. Contudo, lamentavelmente, sinto cada vez mais que se
esperar isso do Congresso é capaz de mofar até a morte. E o Judiciário, tantas
vezes à frente do Legislativo, acaba permitindo essas pequenas garantias aos
brasileiros, mesmo sendo acusado de legislar.
Sim, eu tenho uma família. Ela não é melhor ou pior que a de
ninguém. A diferença apenas é que ela é minha. E, mais uma vez, isso ninguém
vai tirar. Enquanto o Legislativo (ainda) não se meter no que seria ou não o
amor, sigo amando. E construindo a minha família em cima disso.
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Paulo Henrique Brazão, nosso colunista oficial das quartas-feiras, é niteroiense, jornalista e autor do livro Desilusões, Devaneios e Outras Sentimentalidades. Recém chegado à casa dos 30 anos, não abre mão de uma boa conversa e da companhia dos bons amigos.
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