A minha primeira cicatriz de verdade me leva até a década de
1980. Voltando do jardim de infância pelas ruas calmas de Santa Rosa, em
Niterói, com minha mãe, minha irmã, meus primos e minha tia, passei perto de um
Fusca (pode ter sido uma Brasília...) que estava com o cano de descarga
enferrujado e cortante. Depois disso, só lembro da minha mãe desesperada
correndo comigo no colo, tentando estancar com a toalhinha bordada da escola o
beiço que havia aberto na minha canela direita, enquanto uma dor imensa (até
então eu nunca tinha sentido nada parecido) me fazia chorar muito. Tive que
tomar antitetânica (após ser segurado por umas quatro pessoas, porque eu não
queria aceitar a injeção de jeito nenhum) e esperar sarar com muito
mercurocromo.
Durante anos, era muito visível a cicatriz na canela. Mas
aos poucos a gente cresce, a pele busca se regenerar, entra na puberdade e a
perna ganha pelos. Lá ficou esquecida e miúda a lembrança física daquela
dolorosa experiência. Até que dia desses, verificando algo na mesma perna de
forma despretensiosa, encontrei a marca. E com ela, veio como um filme claro a
ferida daquele dia, hoje tão longínquo no tempo.
Dia desses foi aniversário de uma afilhada minha. A única que
já veio “encomendada na barriga”. Só que há cerca de dois anos eu e os pais
dela passamos por uma experiência traumática, que nos afastou de forma bastante
definitiva. Uma amizade que tinha cerca de oito anos, com convivência intensa;
mais presente até do que a minha própria família. Por conta do Whatsapp, ao
menos enviei uma mensagem lembrando a data. Recebi uma resposta até carinhosa e
repleta de esperança de uma reconciliação futura. Meses atrás, por conta de um
compromisso em comum, estivemos juntos fisicamente. E senti a sinceridade dos
sentimentos, mesmo após o episódio que determinou que nossa caminhada seria em
separado.
Tal como aquele corte aos quatro anos de idade, experiências
que ferem o coração e a alma também têm o seu tempo de cicatrização. Sendo que
a ferida, muitas vezes, é muito mais profunda quando é com as palavras e
atitudes do que com um cano de descarga enferrujado. Remédio, curativo e
beijinho de mãe só servem para o corpo. Mágoas e decepções requerem muito mais
do que isso para, de fato, cicatrizarem. Mesmo com o perdão. Mesmo com o afeto.
É preciso tempo. Tempo esse bem chamado por Caetano Veloso em oração de “compositor
de destinos, tambor de todos os ritmos”.
E mesmo ainda que com a ferida estanque, seca e curada,
quanto maior e mais profunda é, fica a cicatriz. Ainda que a dor se vá, ainda
que não exista mais cano de descarga, basta uma olhada despropositada e lá
encontro a marca em meio aos pelos da maturidade. Ainda que a mágoa se desfaça,
tal qual aquela canela direita, a alma nunca mais é mesma. Sarada e em paz, a
vida segue em frente: superando as feridas, mas fazendo questão de nos deixar
viva a memória de cada cicatriz.
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Paulo Henrique Brazão, nosso colunista oficial das quartas-feiras, é niteroiense, jornalista e autor do livro Desilusões, Devaneios e Outras Sentimentalidades. Recém chegado à casa dos 30 anos, não abre mão de uma boa conversa e da companhia dos bons amigos.
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