Daqueles dias, o que mais ficou
na memória foram os tempos passados na Casa da Tia Sônia. Forçando a mente,
revivendo momentos, consigo até mesmo sentir odores e sabores daqueles dias
inocentes passados no interior, onde as horas se arrastavam e tudo era inocente
e juvenil. E Tia Sônia, claro, com seus olhos risonhos e sua frase sempre
repetida: Juízo, menino, juízo.
A pequena propriedade, não um
sítio ou um rancho, mas uma casa no meio do campo, com muito espaço à sua
volta, ficava no interior e era comum passar dias lá nas minhas férias. Ver e
rever os primos, jogar bola no campinho, subir nas árvores e comer fruta direto
no pé, nadar livre no rio límpido de águas ora calmas ora traiçoeiras.
Naquele verão específico, tudo
era diferente. O moleque dava lugar ao rapaz, as espinhas brotavam no rosto e
os desejos afloravam. A filha da vizinha de Tia Sônia deixara de ser inoportuna
e passara a ser atraente. Os primos comentavam sobre as formas adquiridas pela
garota e eu apenas ouvia calado. O garoto da cidade grande era o mais bobo dos
primos e eu não gostaria de ser motivo de chacota. Enquanto todos já tinham
aventuras, eu apenas imaginava o que seria viver todas aquelas histórias.
Numa tarde de calor insuportável
fomos todos para o rio de águas geladas. Ponto de encontro de todos na região, o rio era como se fosse a praia
daquelas pessoas. Por obra do destino, ou não, Glorinha estava lá naquele dia.
Eu não disse isso antes, não é mesmo? Glorinha era o nome dela. E Glorinha
tinha a capacidade de me deixar ainda mais mudo, pois eu sempre gaguejava
quando em sua companhia.
Enquanto todos se divertiam, eu
fiquei sentado naquela pedra, pensando na vida, nos afazeres, no que me
esperava quando finalmente retornasse à minha vida cotidiana na cidade. E foi
assim que ela se aproximou devagar, sem que eu nem mesmo reparasse em sua
presença. Quando me dei conta, ela já estava no meu lado, olhando para minha
cara perdida e com um ar zombeteiro no rosto.
Como ela era linda, meu Deus! E
como eu era idiota. Não fui sequer capaz de formular uma frase, de me fazer
entender. Lembro apenas de falar algo estúpido como ‘que dia quente, não é
mesmo?’. Glorinha do meu lado e eu falando do tempo. O que me consola é que eu
amadureci e aprendi a ser menos bobo nessas horas. Hoje em dia, ao invés do
tempo, eu consigo formular uma frase qualquer sobre a última catástrofe do
outro lado do mundo para emendar uma conversa um pouco menos desinteressante. Sim, esse sempre fui eu! Mas ali,
(somente) naquele dia, eu fui bobo. O que eu não sabia é que ela tinha um
plano.
Sem dizer nada, Glorinha me puxou
pela mão e, quando gaguejei alguma coisa, perguntando para onde estávamos indo,
recebi de volta apenas um ‘Psiiiu’. E, claro, a segui. Pela trilha na mata
fomos parar numa campina de árvores esparsas, mas cujas folhas produziam
sombras aconchegantes. Subitamente, Glorinha parou em minha frente, jogou os
braços em meus ombros e, sem cerimônia, disse: ‘Me beija, vai! Eu sei que você
quer!’.
Lembrando disso hoje, vejo que
não foi nada romântico nem mágico como visualizei naquela época. Lembro-me de
repassar a cena dias e dias e de suar muito em cada vez que me recordava do que
havia acontecido. Os lábios quentes, a pele macia, os cabelos bagunçados. E eu
ali, dando meu primeiro beijo.
E tão impetuosamente como
começou, o beijo acabou. E ficamos ali, olhando um para o outro, sem saber o
que fazer. Até que ela, sempre ela, me puxou pelas mãos e voltamos pela trilha
até a pedra no rio onde eu fiquei olhando para o nada e ela foi mergulhar com o
resto das pessoas.
Por causa daquele beijo eu me
tornei invencível. Fui o melhor no jogo de futebol, ganhei três partidas
seguidas de purrinha e contei até mesmo piadas.
Mas a cara de Tia Sônia e seu
olhar de quem sabia o que tinha acontecido me deixou angustiado e, ao mesmo
tempo, orgulhoso de mim mesmo. Poxa, eu tinha beijado a Glorinha! Na hora de dormir,
o beijo de boa noite de sempre e as palavras divertidas da boca de Tia Sônia: Juízo, menino, juízo.
Hoje, passado tanto tempo, é do
olhar divertido de Tia Sônia do que mais tenho saudade. O único beijo em
Glorinha se foi, os dias no campo também. Mas o que Tia Sônia representava, seu
olhar, seu abraço, sua comida, ah, isso eu nunca vou conseguir esquecer...
E ainda posso ouvi-la dizer,
zombeteira como ela sempre foi: Juízo,
menino, juízo...
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Leandro Faria:, do Rio de Janeiro, 30 e poucos anos, viciado em cultura pop em geral. Gosta de um bom papo, fala pelos cotovelos e está sempre disposto a rever seus conceitos, se for apresentado a bons argumentos. Odeia segunda-feira, mas adora o fato de ser o colunista desse dia da semana aqui no Barba Feita.
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