Niterói, março de 1991 a dezembro de 2001. Um colégio
católico, mais de 4 mil alunos, quase a totalidade de classe média ou alta da
cidade. Passei 11 anos da minha vida, dos 6 aos 17, momento crucial para a
formação da personalidade de qualquer ser humano, dentro dessa instituição
educacional. Tive talvez os melhores professores da região, o melhor ensino, a
melhor infraestrutura, os melhores amigos. Mas convivi de perto com um dos
maiores males que dentro de um local como esse pode se disseminar: o bullying.
Nosso colega Esdras Bailone, colunista deste Barba Feita aos sábados, já tocou nesse assunto por aqui. Mas como ele mesmo alertou, é preciso falar sempre. Somente quem passou por isso sabe das marcas e das sequelas. Não,
não me tornei alguém agressivo ou odioso por esse motivo; não penso em pegar
uma arma e sair metralhando todo mundo do colégio hoje em dia – muito embora,
no auge do bullying, admito que pensei em diversas pequenas vinganças contra
aqueles que me causavam sofrimento, mas nenhuma envolvia morte ou sangue,
fiquem tranquilos. Soube exorcizar muitos dos males causados por essa
perseguição, graças ao carinho de amigos e da família, que, muitas das vezes,
eu preferia manter alheia ao que se passava.
Quatro olhos e óculos de “prástico” (por conta dos óculos);
cotonete (porque era franzino); paraíba (pelo jeito de me vestir, diferente dos
que podiam comprar grifes de marca – além do fato de ser filho de um paraibano);
CDF e nerd (naquela época, esses adjetivos eram muito pejorativos); viado,
viadinho, bicha, boiola (mesmo sendo uma criança que, como qualquer outra,
sequer tinha sexualidade). Além de ouvir diversas vezes que eu era feio ou
muuuuuito feio; ou de forma suave que “um dia eu seria bonito, mas por
enquanto, não”. Esses são apenas alguns dos termos proferidos ao longo desse
tempo – embora, nos últimos dois anos do ensino médio, a coisa tenha melhorado
consideravelmente.
Isso sem contar as perseguições físicas. As vezes em que
tive que correr de um grupo que me hostilizava e me esconder na cabine
reservada do banheiro, esperando que parassem e se dissipassem. Ou de ser
levantado, girado no ar e arremessado no campo de areia por um colega bem maior
do que eu e, consequentemente, me ralar todo. Simplesmente por ser eu. E ainda
ir reclamar no Setor de Orientação Disciplinar do instituto e ouvir que eu
reclamava demais, que tinha que aprender a me virar. Reflito, de vez em quando,
que a situação poderia ser ainda pior se eu fosse gordo e/ou negro. Mas a
escola quase não tinha negros. Justificava isso ao fato de os negros em sua
maioria terem baixo poder aquisitivo, devido à herança da escravidão e da
marginalização, e não conseguirem arcar com a mensalidade cara. Tapavam seus
olhos e punham a culpa num fator histórico e social. Provavelmente da mesma
forma que fazem com o bullying.
Era um colégio em Niterói. Mas mais parecia um high school
americano. Eram muito bem definidas as figuras dos populares e dos losers. Não
é muito difícil de imaginar em qual dos dois grupos eu era incluído. Era sempre
aquele que não queria ir para a Educação Física porque sabia que não tinha a
menor aptidão praquilo que a grande maioria dos meninos queria, que era o futebol.
E não sabia se era pior sobrar e se sentir enjeitado, ou acabar escolhido por
obrigação e jogar muito aquém do que os outros jogavam, tendo que ouvir
reclamações por não fazer bem aquilo que você tinha a convicção de que não
fazia bem.
Poucas eram as vezes em que esses dois mundos se cruzavam de
forma harmoniosa e desinteressada. No meu caso, aconteceu com um grande amigo
que tenho até hoje, chamado Diogo Naked, que atualmente mora na Turquia. O cara
era um dos mais populares da turma e nos aproximamos porque eu comecei a lhe
passar cola das provas. Tínhamos o nosso código já: depositava a borracha com
as respostas no capuz do casaco dele. Acabamos ficando amigos. Estudávamos
juntos, frequentávamos um a casa do outro. Chegou a me levar ao barbeiro dele
para fazer um extreme makeover e trocar o corte de cabelo – o que, aliás, o
agradeço profundamente, porque é mais ou menos assim que corto o cabelo até
hoje...
Entre todos os que praticavam bullying comigo, um, sem
dúvida, se destacava entre os demais. Não tenho problema algum em colocar o
nome dele aqui e, na sequência, explicarei por quê: Vitor Camarão. Fomos
melhores amigos quando tínhamos os nossos nove, dez anos, à época da Primeira Eucaristia.
Um dia, tudo mudou. Lembro muito bem desse episódio. Simplesmente, a partir
dali, a relação mudou completamente. E o Vitor passou a ser o meu grande algoz.
Qualquer pessoa na nossa turma sabia que nós éramos completos antagonistas. Não
nos suportávamos e deixávamos isso muito explícito. Assim foi por cerca de 20
anos. Nesse período, o Vitor passou por momentos muito difíceis; quase foi ao
inferno e voltou. Coisa que só vim tomar ciência no ano passado.
Por conta de WhatsApps e Facebooks da vida, voltamos a ter
contato. Admito que, num primeiro momento, não entendi e até questionei o fato
de ele ter me adicionado nessas redes sociais. Porém, conversamos, muito.
Tocamos em feridas de forma explícita. Acabamos nos entendendo e, de certa
forma, compreendi tudo o que se passou àquela época e descobri que os motivos
da nossa animosidade eram diferentes dos que eu sempre acreditei. Tomei ciência
de que, assim como fui muito magoado, também o atingi por diversas vezes e
formas, na maioria de maneira inconsciente. Éramos duas crianças imaturas. Embora
não concordasse com o caminho que ele acabou tomando para canalizar tudo isso,
nos perdoamos. Não só isso: nos reaproximamos e descobrimos que ainda guardamos
muito mais afinidades que diferenças. A gente se fala constantemente, sobre
tudo: desde corrida e academia até compra de carro, passando por confidências
sobre relacionamentos e sobre a vida. Vida essa que, nesse caso, deu muitas
voltas e nos ensinou mutuamente.
Hoje em dia, refletindo sobre tudo o que passei, vejo que,
embora não na mesma proporção, todos os que me causaram algum tipo de sofrimento
por esse motivo também são vítimas. Vítimas de uma sociedade que cobra que os
meninos tenham atitudes de macho desde novo e que coíbam qualquer outra coisa
que pareça se desviar desse caminho. Que cobra das meninas que tenham cabelos
alisados, sejam magras e vistam as melhores marcas. Definitivamente, a maioria deles não se
tornou ou se tornará pessoas más. Mas acabaram tomando atitudes realmente
perversas em algum momento de suas vidas.
Dia desses, numa festa, ao ver meu companheiro dançar um
funk com algumas mulheres, o filho de um casal de amigos muito querido, que nós
dois vimos nascer, foi até ele falando para que parasse porque era “coisa de
gay”. No que meu companheiro respondeu que era gay. O menino fechou o
semblante, se recolheu. Depois voltou e declarou: “eu não gosto de gay”. E ele
tem apenas oito anos. Tem dois pais esclarecidos. Sua irmã é minha afilhada e
foi nossa dama de honra em nosso casamento. Não, ele não mudou nem comigo, nem
com o meu companheiro. Continua sendo o mesmo moleque brincalhão e carinhoso de
sempre. Mas se não houver um acompanhamento bem próximo, explicando-lhe o
direito de cada um ser o que é, ele será mais uma vítima. E poderá fazer outras
vítimas com preconceitos que ele não deve ter aprendido dentro de casa, mas
entre os amigos, na vizinhança, na escola...
Usando mais uma vez essa analogia, o bullying é como um ovo
de serpente: você sabe o que está crescendo lá dentro, mas até ela sair e te
picar, soa inofensivo e não parece tão feio assim. Porém, está por toda a
parte, está do nosso lado, está dentro de casa. Por isso, é preciso falar sobre
bullying. De novo. E sempre.
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Paulo Henrique Brazão, nosso colunista oficial das quartas-feiras, é niteroiense, jornalista e autor do livro Desilusões, Devaneios e Outras Sentimentalidades. Recém chegado à casa dos 30 anos, não abre mão de uma boa conversa e da companhia dos bons amigos.
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