Ninguém quer escrever sobre qualquer coisa, pois qualquer coisa pode ser tudo
ou nada. Uma dissertação fica sempre difícil no momento de encarar a folha de
papel em branco, ou uma plateia expectante em silêncio, mais ainda se não
houver um tema para abordar. Contudo, escrever sobre qualquer coisa pode
tornar‐se um exercício deveras fácil, no modo em que nos é dada a liberdade de
escolher um tema, um assunto. Mas eu não escolho nenhum tema e procuro
escrever exatamente sobre esse assunto: qualquer coisa.
Qualquer coisa pode ser a liberdade de escolha ou a indiferença de opinião.
Qualquer coisa pode ser o que hoje comi, ou não comi, pelo café da manhã, ou
pelo lanche da tarde. E daí pode ser a fome no mundo, ou abundância de
alimentos concentrada em certas áreas da geografia e vivência humanas,
enquanto a carência e a fome florescem noutras. Qualquer coisa pode ser o
declínio de uma vedeta da música, que decadente paga balúrdios e se submete às
cenas mais patéticas, para continuar sendo a figura de proa, que só para os
admiradores doentiamente incondicionais e para a imprensa necrófaga, consegue
ser.
Qualquer coisa pode ser a estúpida tendência humana para a violência, que leva
a que sigamos evoluindo (será mesmo evolução?) em guerra; pois que há sempre
uma guerra se desenrolando em qualquer parte do mundo, mesmo que os
noticiários, entre as novelas televisivas, não as noticiem. Qualquer coisa pode ser
a alarvidade dos adeptos das torcidas organizadas de futebol, que mostram à
sociedade como os instintos mais selvagens e grotescos fazem parte intrínseca
da constituição animalesca do gênero humano que, tão surpreendentemente
consegue negar o seu pendor divino na afirmação da cavalgadura que é.
Qualquer coisa pode ser a tão pouca fé dum povo que se diz de fé, mas que não
crê que depende apenas de si e, da sua vontade determinada e ativa, para dar
um trato naqueles que dele se aproveitam, espoliando‐o e privando‐o de todos os
bens mais básicos para uma vida digna e que lhe são devidos por alienável
direito mais que divino. Qualquer coisa pode ser a louca mania de negar a
infância às crianças – exigindo delas uma competitividade incondicional, visando
uma produtividade futura num sistema capitalista de consumo ‐ e depois se
digladiarem pelos direitos da criança.
Qualquer coisa pode ser um dia de sol passado à beira mar, ouvindo o marulhar
das ondas no areal branco, como num cartaz publicitário de agência de viagens,
com mordomias incluídas no pacote turístico e beldades desfilando na praia, com
pouca roupa. Qualquer coisa pode ser o discurso do Papa, denunciando o
genocídio de milhares de crianças, mulheres e homens (neste caso, armênios) por
parte de uma nação, a Turquia, que se diz moderna e quer afirmar o seu
pretensamente respeitável lugar entre as mais civilizadas, na negação do seu
infame passado.
Qualquer coisa pode ser a ostentação orgulhosa do vizinho, que tem o maior
quintal de todo o bairro, mas que de tanto ficar ao portão se vangloriando, o
deixa desarrumado e imundo, por falta de cuidados. Qualquer coisa pode ser a
metáfora com que termino este texto, para não me alongar indefinidamente e me
tornar qualquer coisa como um chato.
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ManDrag nasceu em Moçambique (África), viveu em Portugal (Europa) e agora mora no Recife/PE (Brasil). Português de nacionalidade e cidadão do mundo. Profissão? Sobrevivente desse grande cataclismo que é a vida.
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Um comentário:
belissimo texto, como sempre!
Belissima idéias em juntar tão bons escritores e pensadores em um único lugar!
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