1984. Duas irmãs dão à luz a dois
bebês, num intervalo de tempo de menos de um mês e meio. Foram duas gravidezes
tranquilas, as primeiras das respectivas mães, que haviam casado no mesmo dia
com seus noivos, levadas ao altar cada uma por um braço do pai da família, no
ano anterior. As crianças se chamavam Marcela e Paulo Henrique. Desde muito
cedo, eram grudados. As primeiras fotos dos bebês denunciavam isso: Marcela
vivia mordendo o pequeno Paulo Henrique, que chorava como um banana. Estudaram
na mesma sala no Jardim de Infância. Chegaram a se dizer namoradinhos e a terem
fotos dando bitoca lá pelos três anos. Depois, junto com seus irmãos e outros
primos, formavam um grupo barulhento e unido. Os dois tiveram até projeto de
escreverem um livro juntos e de um programete de rádio na adolescência.
A maturidade levou muito dessa
relação, principalmente porque Marcela casou-se relativamente nova. Mas primos
sempre seriam e sempre mantiveram o carinho mútuo. Marcela teve sua primogênita,
Maria Eduarda, a primeira bisneta do grupo. E há pouco tempo, quando já havia
chegado a um consenso com o seu marido de que não teriam mais filhos,
descobriu-se grávida novamente. Diante da surpresa, preferiu mantê-la durante
os nove meses: o sexo da criança foi suspense durante toda a gestação. Marcela
optou por parto normal – já havia se tornado uma defensora e militante da
prática antes mesmo de descobrir que esperava o segundo bebê. E no dia 22 de junho,
nasceu Juliana.
Poderia ser uma bela história de
ficção, mas foi tudo realidade. Sim, o Paulo Henrique em questão sou eu mesmo
(sei que estava óbvio, mas não custa reforçar...). E foi justamente na crueza e
na dureza da vida real que esses destinos acabaram ficando mais próximos
novamente.
Juliana veio ao mundo com muita saúde.
Após cerca de 20 horas de trabalho de parto, os médicos decidiram pela cesariana
ao ver que ela poderia entrar em sofrimento. Com quase 4 kg, chorou forte ao
nascer. Chegou a ir ao quarto para ficar com a mãe. Mas logo se notou que algo
fora do normal ocorria com Juliana. A pequena começou a passar mal e foi levada
às pressas à UTI Neonatal. Após retornar ao quarto, a equipe médica alertou a
mãe que o estado da criança era gravíssimo e que as esperanças eram poucas.
Juliana havia aspirado mecônio ainda na barriga da mãe, justamente porque
chegou a entrar em sofrimento. Para quem não sabe, mecônio são as primeiras
fezes do bebê e sua aspiração ao nascer junto com o líquido amniótico é um dos
maiores terrores neonatais. Por conta disso, com poucas horas de nascida, a
pequena teve um sangramento grave no pulmão, teve que ser entubada para
respirar e se alimentar.
Foram dias de muito sofrimento e,
ao mesmo tempo, de muita fé. Em meus 31 anos de vida, nunca presenciei uma
corrente positiva tão forte e ampla por alguém. Católicos, evangélicos,
umbandistas, messiânicos, espíritas kardedistas, pessoas sem religião... Teve
gente de todas as crenças pedindo por ela. Convoquei amigos também a orarem pela
minha priminha. Eu mesmo nunca rezei tanto por alguém (além de mim) quanto por
ela. A todo momento, me pegava pedindo pelo seu bem.
A cada dia, buscava falar com
Marcela para ter notícias. E dos seus primeiros dias, sombrios, desesperançados
e com pouca evolução do quadro clínico, aos poucos notei minha prima retomar a
fé de que sua filha iria se sair dessa. Não esqueço quando vi sua primeira foto
com o tubo, lindinha mesmo dentro da incubadora, enquanto participava de uma
reunião com um cliente e me emocionei. Ou com um vídeo com ela já mais forte,
tentando tirar o tubo do oxigênio com a mão. Ou quando Marcela me mandou uma
mensagem cheia de corações radiantes porque havia conseguido pegar a filha no
colo pela primeira vez desde o dia do seu nascimento. Cada dia foi uma pequena
vitória – e pude sentir, tão próximo, aquele famoso lema de que era preciso
viver um dia após o outro de fato.
Prometi para mim mesmo que só
escreveria sobre o assunto quando Juliana estivesse bem. E ela recebeu alta na
semana passada. Foram quase duas semanas inteiras de apreensão e recuperação
gradual, mas sem qualquer susto nesse tempo todo. Desde que foi internada, Juliana
só nos deu boas notícias. Agora sua tentativa de sobrevivência é aos apertões
amorosos e abraços sufocantes de sua irmã mais velha, que não quer largá-la.
Junto com a pequena, aproximaram-se
os corações de uma família. Não houve quem ficasse alheio ou incógnito à sua
situação: primos, irmãos e tios se falavam diariamente para terem notícias. Só
dava ela. Mesmo Marcela e eu nunca mais havíamos nos falado com tanta frequência
como por agora. Recém-chegada, ampliou a fé da família em Deus (para quem
acredita) e nos homens, pois a boa vontade desinteressada que encontramos em
todos pela recuperação da pequena foi infinita. O bebê que já foi concebido e
gestado como surpresa não quis deixar a missão de nos surpreender a todos desde
o seu nascimento.
Ainda não a peguei em meus braços
e ainda não tive a oportunidade de abraçar forte sua mãe, cúmplices de uma
vitória que não é individual, mas de dezenas de pessoas e maior ainda de um
serzinho de menos de um mês de idade. Porém, quando chegar a hora, vai ser
exatamente como rever aquelas fotos com os dois de fraldas enquanto Marcela me
mordia e eu chorava: o sofrimento ficou somente no retrato antigo. Agora, é
hora de celebrar a vida.
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Paulo Henrique Brazão, nosso colunista oficial das quartas-feiras, é niteroiense, jornalista e autor do livro Desilusões, Devaneios e Outras Sentimentalidades. Recém chegado à casa dos 30 anos, não abre mão de uma boa conversa e da companhia dos bons amigos.
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