Seguindo o roteiro traçado para a viagem, mesmo com os
imprevistos (que estavam só começando), voltamos ao Peru. Ao chegar a Puno,
decidimos descer na rodoviária e buscar outro ônibus que nos levasse até Cusco.
O próximo turístico, da empresa Cruz del Sur, com quem tivemos uma boa
experiência no início da viagem, sairia somente às 22h. E eram pouco mais do
que 15h30. Resolvemos tentar qualquer empresa que saísse por aquele horário. E
encontramos a companhia Libertad. Os peruanos foram super solícitos, vendo a
nossa urgência de chegar a Cusco, e fizeram de tudo pra gente embarcar o mais
rápido possível, sem maiores burocracias. O ônibus tinha dois andares e,
aparentemente, estava em melhores condições que o da Litoral, que veio da
Bolívia. Pelo menos a janela abria e o banco estava inteiro, seco e reclinável.
O banheiro também não tinha água e fedia, mas estava no primeiro andar. Nós
viajávamos no segundo, logo, longe do cheiro. Todo o ônibus tinha um odor
estranho, mas que não identificamos a princípio. Eu havia sido avisado que o
transporte para turistas era muito diferente daquele dedicado aos moradores
locais – e que estávamos experimentando naquele momento.
Dentro do ônibus, conhecemos um casal de brasileiros que
estava fazendo uma viagem mais baixo custo. Eles nos alertaram que haveria uma
greve de trens em Machu Picchu, nos dias em que nós iríamos para a cidade, o
que nos gerou apreensão a partir daquele momento. Tentamos descansar ao longo
da viagem, enquanto o coletivo se enchia de peruanos, principalmente quando
parou na rodoviária de Juliaca, outra cidade próxima. Aliás, houve várias
paradas. Em uma delas, entraram duas mulheres de avental, oferecendo uma bebida
estranha dentro de um saquinho, que parecia um saco de mijo. Depois, passaram
vendendo uma carne assada. Sim, uma delas abriu um embrulho com uma imensa
carne assada dentro do ônibus e cortou com um cutelo, como uma açougueira
enlouquecida, enquanto o ônibus balançava pela estrada. Depois, colocou os
pedaços dentro de um saquinho e entregava para quem comprava, junto com um
pedaço de papel higiênico para limpar os dedos engordurados. Era o cheiro desse
assado que estava entranhado no ônibus e não tínhamos até então identificados.
Lá se foram quase sete horas de viagem até chegarmos a
Cusco, num caminho que parecia interminável. E, para nossa surpresa, chegamos à
rodoviária local junto com o ônibus da Litoral, que pegamos em La Paz. Ou seja,
mesmo tendo descido do coletivo, procurado outra companhia, parado em diversas
rodoviárias e pontos, ainda chegamos no mesmo horário. Pegamos o táxi para o
nosso hostal, que já estava reservado, chamado Malqui. A hospedagem era justa,
com móveis coloniais. Bom café da manhã, mas calefação ruim (e paga à parte). O
banheiro pecava um pouco pela higiene, especificamente a cortina do boxe. Mas,
tudo bem àquela altura. Ficava um pouco distante da Plaza de Armas (coisa de
quatro, cinco quadras) e numa ladeira, o que nunca era vantagem numa cidade na
altitude. Porém, já estávamos relativamente bem ambientados e não se tornou tão
sofrível.
Buscamos um podrão pra comer, pois estávamos somente à base
de Pringles, Óreo e Coca-Cola. Depois retornamos ao hotel para dormir e
aproveitar bem o dia seguinte, buscando esquecer tudo o que se passou.
Cusco é uma cidade lindinha. Simpática, ritmo calmo e, ao
mesmo tempo, efervescente pelo turismo. Baixíssimo índice de criminalidade. É o
grande expoente da imposição da cultura espanhola sobre a inca: era a
verdadeira capital e cidade sagrada dos incas, berço do mais ambicioso projeto
religioso-político de civilizações americanas pré-colombianas.
No dia seguinte, em meio a um tempo nublado, fomos
informados de que a paralisação de trens em Machu Picchu seria nos dias 21 e
22. Nossa volta estava programada para o dia 21. Disseram que seria quase
impossível voltarmos, pois manifestações como essas costumavam ser fortes e
agressivas. Tentei convencer o Cristiano a mudar o roteiro traçado, mas ele não
aceitou. Fomos até o escritório da empresa de trens que garantiu que estaria em
funcionamento nos horários adquiridos e nos emitiu as passagens, já compradas
previamente pela internet. Ficamos mais tranquilos e mantivemos o programado
até então. Fomos passear por Cusco e conhecer a catedral, construída sobre uma
área sagrada para os incas. Segundo o nosso guia, um showman levemente arrogante, mas que prendia a sua atenção por todo
o segundo com as suas aulas e explanações, a catedral chegou a ter um projeto
para ser um Vaticano fora da Europa. Que foi literalmente ao chão devido a um
terremoto séculos atrás. Na sua reconstrução, o prédio foi reduzido e, de cinco
naves, caiu para três.
Na igreja, onde não é possível fotografar, aprendemos muito
sobre as crenças dos povos originais: sua adoração à cor preta como sagrada e a
analogia do branco com a morte; suas representações de Pachamama, a deusa da
fertilidade e da terra. E, principalmente, como os espanhóis se valeram disso
para criar um sincretismo e pregar o credo cristão aos povos locais, tornando o
Peru um país extremamente católico.
De lá, partimos para o Qoricancha, um mosteiro colonial que
foi construído sobre o maior templo cerimonial e político do império inca, sede
do governo, que ficou escondida até um terremoto relativamente recente.
Aprendemos muito sobre a arquitetura deles e suas técnicas extremamente elaboradas
para manter as construções de pé, mesmo diante das atividades sísmicas. Incrível
pensar que, naquela época, já existia tal tecnologia. E que eles dedicavam a
sua vida ao propósito de ficar preparando pedras para construir e deixar algo
para as gerações futuras, num pensamento coletivo de dar inveja a abelhas e
formigas.
No mesmo dia, ainda conhecemos outros sítios arqueológicos
próximos a Cusco. Fomos apresentados ao local onde um dos maiores imperadores
incas teria sido morto numa batalha com as tropas de Francisco Pizarro. Um
deles, Tambomachay, seria uma das principais entradas do reino, na qual todos
os recém-chegados deveriam se purificar nas águas das fontes que jorram até
hoje. Curioso que ninguém sabe de onde vem a água: só há a certeza de que não é
de nenhum dos mais de 120 pontos hídricos que foram mapeados até hoje no
entorno. Por sensores de temperatura, já se conhece que a água vem por
encanamentos de mais de oito quilômetros de extensão, mas não se descobriu de
onde. Segundo estudos, como eram povos guerreiros, os incas tinham medo de
serem envenenados em um enfrentamento. Esse seria o motivo para as suas fontes
terem origens secretas.
Depois de jantarmos um belo pollo a la brasa, especialidade dos restaurantes de Cusco, voltamos
ao hotel. No dia seguinte, já pegaríamos estrada novamente. Contratamos um
carro particular para passear pelo Vale Sagrado dos Incas, que nos buscou às 7h
da manhã. O motorista foi ótimo e nos levou para os principais pontos e sítios
do caminho até Ollantaytambo, onde tomaríamos o trem para Aguas Calientes,
porta de entrada para Machu Picchu. Passamos por ruínas incríveis, como as de
Pisac (ou Pisaq) e da própria Ollantaytambo. Edificações completas à base de
pedra, com toda uma estrutura de cidade. A melhor coisa foi termos o motorista
particular, por um preço pouco acima apenas do que pagaríamos pelo passeio coletivo:
chegamos mais cedo do que as excursões aos locais; com isso, os pegamos ainda
vazios. Passamos ainda pela cidade de Urubamba, mas sem nada pra fazer por lá.
Em Ollanta, pegamos o trem da PeruRail. Em pouco mais de
1h30 de viagem, na qual foi possível ver a mudança da paisagem de uns Andes
mais áridos até uma verdadeira floresta amazônica, ainda fizemos amizade de
leve com um casal de coroas do Canadá (na verdade, a esposa era de Lima – mas
não tinha a menor pinta de peruana – e se mudou cedo para a América do Norte).
Ela estava com um bico horrível no início da viagem, mas se mostrou uma pessoa
super simpática e faladeira durante todo o tempo, em especial com o Cristiano –
que tinha criticado minutos antes a sua antipatia inicial.
Aguas Calientes é uma cidade bem bonitinha, totalmente
voltada para o turista, que, guardada as devidas proporções, me lembrou uma
Praia do Forte, na Bahia, sem praia. Lá, ficamos em um hostal chamado La
Vecindad. O dono, Yersin, era de uma cordialidade impressionante. Ficamos em um
quarto virado para o Rio Urubamba e uma montanha impressionante (para nós,
acostumados com os nossos morros pequenos, chegava a ser levemente
assustadora). Dormimos ouvindo o rio, que é um dos que dão origem ao Rio Ucayali,
que se torna o nosso Amazonas. Acordamos bem cedo (contando com a boa vontade
do pessoal do hostal para antecipar o nosso café da manhã) e seguimos para a
imensa fila de ônibus para subir a Machu Picchu. Mesmo às 5h da madrugada,
centenas de pessoas já estavam lá plantadas. Fomos com um casal de mineiras que
conhecemos no hotel, extremamente divertidas. Demoramos cerca de 40 minutos
para embarcar e mais 20 para subir. Detalhe que foi o único dia que pegamos
chuva nas duas semanas em que ficamos viajando, logo na data de conhecer Machu
Picchu.
Chegando à cidade perdida dos incas, tivemos daquelas visões
para marcar toda uma vida: quando se sobe a primeira trilha e se olha para
trás, em meio à névoa da chuva fina era possível encontrar a cidade toda
desenhada sobre a montanha. Coisa de louco. Aproximamo-nos e tiramos algumas
clássicas fotos, entre momentos mais enevoados e outros em que o tempo abria.
Esperamos nosso guia chegar e fizemos o passeio com o grupo, para saber mais
sobre a cidade. Muito já se descobriu, mas pouca coisa ainda se sabe de fato
sobre Machu Picchu. Há suspeitas de que foi um plano de expansão do império
inca (afinal, ficava fora das cercanias originais) para a Amazônia ou uma
propriedade privada de um dos imperadores. Fato é que tudo impressiona. E mesmo
em meio aos turistas que já chegavam aos montes, foi possível sentir boas
energias em diversos momentos.
Nós ainda encaramos parte da trilha de Wayna Picchu, a
montanha mais alta da região, mas não aguentamos devido ao cansaço e à
preocupação em voltar a Aguas Calientes para ver como seria a nossa volta. Na
saída de Machu Picchu, já encontramos um enorme grupo de manifestantes, com
cartazes e tambores. Minutos antes, eles haviam interrompido o serviço de
ônibus, mas quando chegamos já estava tudo liberado. Conseguimos retornar à
cidade e simplesmente encontramos todos os estabelecimentos fechados por causa
do medo dos protestos. Alguns restaurantes até funcionavam, porém de portas
baixas. Encontramos um lugar para comer e voltamos ao hotel para pegar as malas
e ir à estação de trem, ver a real situação do serviço.
Lá, a situação era desoladora. Toda a feira de artesanatos
que rodeava a estação estava fechada. Centenas de turistas sentados pelo chão,
aguardando uma resposta. Alguns, com voos marcados para o mesmo dia ou no dia
seguinte logo cedo. Após longo silêncio da PeruRail, foi lido um comunicado
informando que, por motivos de segurança, não haveria serviço naquela noite
(diferentemente do que haviam nos garantido em Cusco). Houve muita revolta, xingamentos,
ameaças de quebra-quebra, inclusive envolvendo as mineiras supracitadas. Ainda
aguardamos em vão, em busca de uma mudança de planos, mas não teve jeito.
Trocamos contatos com outros brasileiros em mesma situação, retornamos ao nosso
hostal, imploramos por uma vaguinha e Yersin nos conseguiu, na camaradagem.
Decidimos que o jeito seria madrugar novamente e sair de Aguas Calientes a pé,
numa trilha de horas, para pegar um carro até Cusco. Se tudo desse certo, a
viagem seria longa, mas chegaríamos a tempo de tomar o nosso avião para Lima.
Se desse certo...
OBS: Esse relato terminaria nessa quarta-feira. Mas avaliei
que ficaria um texto muito grande, pois, apesar de ser a reta final, foi a que
mais teve acontecimentos em toda a viagem. Portanto, voltamos semana que vem
com a derradeira (e mais cheia de imprevistos) parte da viagem.
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Paulo Henrique Brazão, nosso colunista oficial das quartas-feiras, é niteroiense, jornalista e autor do livro Desilusões, Devaneios e Outras Sentimentalidades. Recém chegado à casa dos 30 anos, não abre mão de uma boa conversa e da companhia dos bons amigos.
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