Não, esse não é um texto sobre como eu perdi minha virgindade. Nem é
um relato sobre #MeuPrimeiroAssedio. Mas é importante também.
Queria contar um pouco sobre qual é a minha primeira lembrança real
sobre vulnerabilidade, e como isso me assombrou por tantos anos (e
assombra tanta gente, tenho certeza) até que eu descobrisse que ser
vulnerável pode ser maravilhoso.
Eu tinha por volta de 6 ou 7 anos. Sempre fui muito tímida. A mais
quietinha da sala, a primeira da fila, a que não incomodava e, por sorte,
não era incomodada por ninguém (exceto por uma menina de mesmo
nome que o meu, que além de colega de classe, era minha vizinha.
Devido à separação dos pais, ela acabou passando por uma fase difícil de
chamar atenção, e fazia isso me mordendo todos os dias. Passou.
Perdoei.). Nunca tive uma infância rica, mas também nunca me faltou
nada. Estudei em colégio particular, fiz curso de inglês, natação, nunca
fui à Disney, mas minha mãe sempre fez um esforço enorme pra provar
que a singela cidade de Meaípe, no Espírito Santo, era tão legal quanto.
Mas algumas coisas na minha casa eram artigos de luxo: refrigerante
somente nos finais de semana, TV à cabo chegou bem tarde e internet só
depois de meia noite. O aparato tecnológico foi quando fiquei mais velha,
claro (mas o refrigerante sempre foi assim). O lanche da escola era
sempre de casa, mas uma vez por semana minha mãe dava dinheiro para
eu e meu irmão comprarmos algo nada nutritivo na cantina do colégio.
Aí começa meu drama. Um dia recebi o dinheiro e mal podia esperar o
sino bater (eu estudava em colégio de freira, era sino o tempo todo
tocando por lá) anunciando aquela pausa merecida. Aquele seria o dia do
combro cachorro quente + coca-cola de máquina. Minha surpresa foi
que, ao chegar e pedir pra moça (Dona Ângela, que saudade) o que eu
queria, ela logo olhou para a nota na minha mão e disse: “o cachorro
quente aumentou”. Putz. Minha mãe não sabia disso quando me deu o
dinheiro contado do lanche. E eu, tímida, não sabia argumentar. Nem
pedir fiado. Isso aconteceu há muitos anos atrás e eu ainda consigo
lembrar de como era a cantina, da cor da parede, dos azulejos
engordurados, do cabelo dourado da Dona Ângela e da barba por fazer
do Seu Natal (o marido dela), e lembro exatamente de como foi a cena:
eu peguei o dinheiro de volta e sentei-me no banco de cimento verde
bandeira em frente à mesa de pingue-pongue, cabisbaixa e com água na
boca, envergonhada de não ter como pagar o lanche.
Ora veja, eu
poderia ter contornado essa situação, certamente isso já deve ter
acontecido com outros alunos, e não é o fim do mundo. Mas pra mim
era. A timidez me impedia de tomar alguma outra atitude que não a de
olhar triste para meu par de tênis azul marinho, torcendo para o sino
tocar novamente e eu não precisar mais estar ali, vendo todo mundo
lanchar menos eu. Esse dia foi quando experimentei o gosto de estar
vulnerável a qualquer coisa. Falta de dinheiro, falta de coragem, falta de
jogo de cintura. Fiquei exposta à uma situação que eu não conseguiria
resolver e me senti culpada. Por que eu não levei mais dinheiro? Por que
eu não pedi só o cachorro quente e bebi água do bebedouro depois? Por
que não pedi emprestado a algum amigo? Por que diabos eu deveria me
sentir tão culpada por ter apenas seis anos e não saber resolver uma
situação pela qual eu não tinha passado ainda? Sorte que, compadecida
da minha situação, Dona Ângela me chamou depois de alguns minutos e
me deu o lanche, dizendo que eu podia pagar no dia seguinte. Comi feliz.
E me senti culpada em casa depois, quando tive que pedir mais dinheiro
à minha mãe.
Daí em diante guardei esse código no meu sistema nervoso:
vulnerabilidade é ruim. E custou algumas porradas da vida, um TED
Talk fenomenal e uma enxurrada de leitura da magnífica Brené Brown
para que eu pudesse, então, começar a olhar novamente para todos esses
momentos em que me senti vulnerável e perceber a beleza neles (e deles).
Entendi que existe uma grandeza na vulnerabilidade em sentir um frio na
espinha e o estômago revirado cada vez que você lembrar do primeiro
“eu te amo” de alguém que você ama muito. Mesmo que você ainda ouça
a mesma frase todo dia. Ou mesmo que você não possa mais escutar.
Entendi que existe uma racionalidade quase raivosa na vulnerabilidade
de um católico que assiste Spotlight no cinema. Ou de um judeu que se
proponha a manter os olhos abertos durante uma cena que retrate de
forma real demais o holocausto em qualquer filme sobre a Segunda
Guerra. Entendi que culpa e vergonha são mais prejudiciais a mim do
que a qualquer outra pessoa que esteja me vendo (ou lendo). Entendi que
ter medo de ter medo não é vulnerabilidade, e sim insegurança. E ser
vulnerável é aceitar que, às vezes, vamos ser, sim, inseguros.
Então decidi que lembrar desse primeiro “eu te amo” deveria me deixar
feliz, ao invés de melancólica. E que meus anos enfurnada em um colégio
católico deveriam me deixar nauseada vendo Spotlight, ao invés de
apenas encantada com um roteiro genial. E que prever que um cachorro
possa me morder não deveria me impedir de tentar fazer carinho depois
de uma cerveja a mais. Decidi que a vulnerabilidade faz parte de mim,
faz parte do meu lado humano, do meu lado androide, do meu lado
mutante, do meu lado transgressor, do meu lado corajoso e até do meu
lado miserável. E por mais que sempre tenha feito parte, eu decidi
enxergar isso agora, quando o medo de não poder pagar o cachorro
quente não me assusta mais assim.
Afinal, aprendi que a vulnerabilidade
pode me ensinar, dentre tantas coisas, a pedir ajuda. E essa é a melhor
lição que eu poderia ter aprendido nessa vida.
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