Alma Clara tinha o coração frágil e, naquele dia quente e
cansativo como tantos outros, após mais um exaustivo dia de trabalho, encerrou
o expediente e saiu atrasada e apressada para não perder o ônibus das 17 horas.
Era um trajeto longo até sua casa, onde sempre chegava por volta das 20 horas e
começava uma segunda jornada de trabalho, antes de deitar sua carcaça dolorida
na cama de solteiro com colchão fino que dividia com a sobrinha de 10 anos,
onde sentia todas as ripas de madeira, uma a uma em suas costas magras.
Morava em um barraco de dois cômodos com a avó acamada que mal se
levantava da cama, três sobrinhos e um sobrinho-neto de 2 anos, filho da
sobrinha mais velha de 16, grávida de 6 meses do segundo filho.
Alma Clara, com quase 40 anos, tinha uma vida miserável. O barraco que dividia
com toda aquela gente ficava numa favela às margens de um canal fétido, que ao
primeiro sinal de chuva inundava tudo e alagava os dois cômodos em que
coabitava, e que com muito esforço tentava manter limpo e organizado. Sempre
que chovia era um "Deus nos acuda".
Sua rotina consistia em trabalhar como faxineira em um grande call center no
centro da cidade e, ao chegar em casa, cuidar da avó e dos sobrinhos. Preparar o
banho da velha, trocar as fraldas, providenciar o jantar e verificar se tudo
correu na mais perfeita ordem durante o dia. Depois de toda essa maratona, ela
conseguia deitar-se o mais cedo à meia-noite, para estar de pé às 5 da manhã.
Às vezes, dormia com fome, a barriga roncando, mas o cansaço era tanto que
acabava esquecendo de se servir das sobras dos sobrinhos, porque ela só comia
depois que todos estivessem alimentados. Sempre foi assim, a vida toda
resignou-se em ser a última, em aceitar de bom grado os restos oferecidos com
aparente generosidade. E sempre foi servil, em casa, no trabalho, na
vizinhança. Nunca soube dizer não.
A irmã mais velha fugira com um homem assim que pariu o terceiro filho e nunca
mais mandou notícia. A avó a maltratava chamando-a de mosca morta, songamonga e
todos os tipos de adjetivos desprezíveis. Não gostava das netas, a primeira era
uma vagabunda e a mais nova uma inútil. Ficou extremamente doente antes da
filha, mãe de Alma Clara, falecer vítima de um câncer de mama. E ironicamente
ficou aos cuidados da neta inútil, que retribuiu com carinho e dedicação toda a
falta de afeto.
Alma Clara idolatrava sua mãe. Era uma mulher amorosa, mãe afetuosa, que dentro
das limitadas possibilidades fazia o possível pra dar uma vida harmoniosa e
feliz às filhas. O único amor que Alma Clara conheceu foi o de sua mãe, que
partiu cedo demais. O pai era pastor de uma igreja e morrera num acidente antes
de ela nascer, depois dele sua mãe se dedicou às obras na igreja e nunca mais
teve outro homem. Nas poucas vezes que sonhava, Alma Clara sonhava com o pai correndo até ela num campo verdejante e abraçando-a forte e demoradamente, ou
com ele e sua mãe esperando-a nas portas do céu, envoltos entre nuvens brancas e
azuis.
Alma Clara tinha uma vida feia, mas por não conhecer outra, achava que estava
tudo bem. Terminou o segundo grau e uma vez almejou fazer um curso superior,
queria ser professora, mas as circunstâncias de sua realidade a impediam. Uma
vez engravidou de um namorado por quem se apaixonou e ficou feliz com a
possibilidade de formar uma família e ter uma vida diferente, mas logo que deu
a notícia da gravidez o sujeito foi preso por tráfico e pouco tempo depois
morto na cadeia. Alma Clara não suportou a notícia e perdeu o bebê, foi quando
descobriu que tinha um problema no coração e precisava se cuidar, emoções muito
fortes poderiam ser fatais. Foi então que teve que aumentar a carga horária de
trabalho, pra ganhar um pouco mais e conseguir comprar os remédios do coração.
Depois do filho que perdeu e da morte do companheiro, Alma Clara nunca mais se
envolveu com ninguém, perdeu o pouco viço que ainda tinha e se achava incapaz
de atrair outros homens, se achava feia. Mas, não era feia, era uma mulher
normal. Magra, parda, cabelos e pele um pouco oleosos pela falta de produtos
adequados e olhos negros quase sem vida. A falta de vaidade e o sofrimento
ignorado, escondiam o que poderia ser uma bela mulher.
Mesmo com uma vida desgraçada, tendo que trabalhar que nem burro de carga,
dependurada do alto de um prédio de dez andares pra limpar vidros de janela;
carregar nas costas uma avó quase vegetativa, três sobrinhos e um sobrinho
neto; aguentar o “batidão” do funk de letras degradantes no último volume, em
dias que teoricamente seria seu dia de descanso; suportar o mau cheiro da
favela, e ainda assim não receber sequer um olhar de gratidão, Alma Clara era
uma boa alma, tão boa que chegava a ser boba. As colegas no trabalho a chamavam
de otária, mas Alma Clara não sabia ser diferente, sua natureza era assim,
mansa, generosa, desprendida.
Mas naquele dia, ao pegar o ônibus de volta pra casa, Alma Clara teve uma
surpresa. O ônibus mudou seu itinerário, fez um desvio de rota e passou por
outros caminhos. Caminhos que ela não conhecia, que nunca tinha visto. E
naquele caminho diferente, Alma Clara sentiu um leve desespero, achou que tinha
pegado o ônibus errado. Ficou angustiada pensando que chegaria atrasada em casa,
que não conseguiria fazer o jantar na hora, aprontar a avó, deixar a casa em
ordem, como se o eixo de seu microscópico e medíocre universo fosse ser
totalmente desalinhado por causa de um atraso de uma ou mais horas.
Perguntou ao cobrador se havia pegado o ônibus errado, ele a tranquilizou dizendo
que o itinerário tinha mudado àquela semana devido à obras na estrada de
costume, mas a viagem não atrasaria. Sentou-se mais calma e então começou a
observar o novo caminho. E viu que era completamente diferente do que estava
acostumada. Era bonito, era muito bonito. O ônibus passava por um bairro nobre,
daqueles que Alma Clara só via pelas novelas da televisão, quando parava de vez
em quando em frente ao aparelho pra imaginar como seria se aquela vida tão
cheia de beleza existisse de verdade.
De repente, tudo estava ali diante de seus olhos, próximo, palpável. As ruas
limpas, as casas chiques, as árvores que pareciam pinturas. Tudo tão perfeito
que parecia miragem, alucinação. Dominada por um encantamento arrebatador, Alma
Clara fez sinal e desceu do coletivo.
Sempre acostumada à brutalidade de passos cansados e apressados, Alma Clara
pisou o chão como se flanasse. Respirou fundo, o cheiro da rua era bom. As
calçadas tinham canteiros ajardinados. As pessoas caminhavam com passos
delicados. Roupas leves. Cabelos sedosos brincando com a brisa. Parques.
Shoppings que pareciam palácios. Carros importados. Patins. Gente de corpo
escultural malhando em uma academia com paredes de vidro. Prédios. Mansões.
Livrarias. Era tudo tão lindo. Dourado, claro, colorido. O céu tão azul. Alma
Clara contemplou, suspirou, seus olhos cheios de fascínio. Foi caminhando sem
destino, queria apenas desbravar mais e mais toda aquela beleza, àquelas
pessoas, aquele mundo tão distante do seu.
Avistou um café, entrou. No ambiente tocava um jazz. Ela nunca tinha ouvido,
mas o som a hipnotizou. Pessoas conversavam com sorrisos brancos e cheios de
dentes nos lábios. Conversas ao pé do ouvido. Famílias. Casais apaixonados.
Bolinhos, pães, bebidas fumegantes que ela nunca tinha visto, nas mesas. E
tinha flores também, cada mesa era decorada com uma gérbera de cor diferente. O
aroma do café que exalava no lugar era muito diferente do cheiro que estava
acostumada, parecia perfume. Se imaginou passando àquele perfume pra ir
trabalhar, seria a mais cheirosa de todas as suas colegas. Esboçou um leve
sorriso diante de tal pensamento.
Um garçom a abordou perguntando se desejava algo. Pediu um copo de água. Com ou
sem gás? Alma Clara não entendeu. Queria apenas um copo d'água, da torneira
mesmo. O garçom teve pena diante da extrema humildade da moça. Deu-lhe uma garrafa
de água mineral sem gás, que ela fez questão de pagar até descobrir que custava
mais do que as míseras moedas que tinha na velha bolsa puída. Agradeceu a
gentileza do garçom e saiu.
Logo em frente ao café tinha uma praça. Sentou-se
no banco de mármore italiano e tomou sua água lentamente. Do outro lado da rua,
uma mulher elegante passeava com seu poodle branco e tosado à perfeição. Alma
Clara ficou deslumbrada, até os bichos ali eram diferentes, pareciam de
pelúcia. O cachorro a olhou, ela sorriu pra ele. Depois olhou pro céu azul
grená. Pensou na vida que tinha, na vida daquelas pessoas. Era outra vida,
muito mais bonita, farta, brilhante que a dela. Pensou pela primeira vez em
toda sua existência, que a sua vida não era vida. Não, comparado com aquele mundo
novo que ela descobrira sem querer naquela tarde. Pensou pela primeira vez numa
palavra: desigualdade. Refletiu pela primeira vez em sua vida miserável. Sentiu
raiva, sentiu pena, sentiu saudade do que nunca teve. Olhou pro céu mais uma
vez e lembrou-se dos pais, de como gostaria de encontrá-los. Uma lágrima rolou
de seus olhos negros, que agora tinham um certo brilho. O poodle latiu,
desvencilhou-se de sua dona e correu em direção à ela. Alma Clara sorriu um
sorriso cansado pro cão que parecia pelúcia, fez um carinho em sua cabeça e
sentiu as pernas serem suavemente lambidas por ele.
Alma Clara fechou os olhos.
A garrafa d'água pendeu-se de sua mão esquerda. O cachorro deu três latidos
fortes e estridentes, mas não adiantou. O coração frágil de Alma Clara, parou.
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Esdras Bailone, nosso colunista oficial do Barba Feita aos sábados, é leonino, romântico, sonhador, estudante de letras, gaúcho de São Paulo, apaixonado-louco pelas artes e pelas gentes.
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2 comentários:
Mágico.
Mágico é conseguir passar a mesma emoção que senti ao escrever pra quem lê!
Obrigado, Igor!
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