Vou-me embora pra Latibom. Lá, sou amigo do Rei. Na verdade,
lá eu sou o Rei. Latibom só tem dois habitantes. Ou melhor, só habitou a cabeça
de duas pessoas: a minha e a de minha irmã. Tem cheiro de infância, gosto de Nescau e
biscoito Maizena. Tem casquinha de joelho ralado de quem está aprendendo a
andar de bicicleta e livro de caligrafia de quem rabisca o seu primeiro beabá.
No fim da década de 1980, eu e minha irmã éramos duas
crianças felizes. Sempre muito grudados, com uma conexão surreal em pensar e
falar as mesmas coisas. Entender e errar também. Não à toa, naquele ano de
1988, Angélica fez um sucesso estrondoso com seu Vou de Táxi. Daí surgiu
Latibom. Nossos ouvidos e cabeças entendiam, juntos, que a loira cantava:
“No espelho. A cor do batom. Lembro o beijo. Foi pra Latibom...” (em vez de “lá de bom”).
Logo, se aquela nossa recreadora matinal, segunda loira mais
importante em nossas televisões (sorry, Sra. Huck, mas nós sempre fomos mais
fãs do Xou da Xuxa), queria pegar o mais famoso táxi da música brasileira para
ir pra Latibom, por que nós não quereríamos?
A década de 1980 foi considerado um período perdido. O
início dos anos 1990, idem. Lembro-me dos meus pais penando para conseguir
comprar carne, tanto pelos poucos recursos quanto pelo ágio cobrado. Presunto e
requeijão eram artigos de luxo. Sorvete só dava pra ser aquele napolitano que
vinha em forma de tijolo e se cortava de faca; o pote de 2 litros também não
era pro nosso bico.
Ainda assim, éramos felizes na nossa ótica infantil.
Nessa mesma esteira, veio o confisco das poupanças. Meu pai,
num golpe de sorte, tinha sacado semanas antes tudo o que tinha guardado para
mim e para minha irmã, para dar entrada em um apartamento modesto no também
modesto bairro do Fonseca, em Niterói. Hoje em dia, soube de gente que de
desesperou. Houve suicídios e infartos fulminantes.
Nós, miúdos, alheios a tudo isso, nos preocupávamos apenas
em sermos criança.
Somente ouvíamos as críticas a Collor (falei pra minha tia,
a caminho da urna, pra votar no Brizola por causa da musiquinha, mas ela não me
ouviu), Zélia e PC Farias; ouvíamos também falar sobre Casa da Dinda e o presidente
ter “aquilo roxo”. Porém, talvez o momento mais doloroso do nosso dia fosse a
hora em que tínhamos que enfrentar a fria água da piscina do prédio pra fazer
natação às 7h da manhã, de estômago vazio (sim, porque se não ficaríamos
enjoados, diziam) e depois descermos a longa escadaria abraçados, quase com uma
hipotermia e de pernas tremendo pelo exercício, pela fraqueza e pelo frio. Mas
também, quando voltávamos, era hora do suco de laranja (às vezes, um leite de
saquinho tipo A ou B substituía) com pão comprado na venda da frente.
O tempo avançou mais um bocado e veio o Plano Real.
Coincidiu com a época em que nos mudamos para outro bairro de Niterói, Itaipu,
bem mais isolado do que o anterior. Havia muito mais mato do que construção.
Nossa mudança foi no exato dia em que Alemanha e Bolívia abriram a Copa de
1994, nos EUA. Um mês depois, o Brasil se tornaria tetracampeão e seria possível
comprar uma caixa de Bis ou uma cerveja de garrafa a R$ 1. A vida floresceu; vi
meu pai viver ótimos momentos de bonança e outros de crise financeira,
segurando o negócio familiar numa corda bamba coberta por cerol. Havia anos em
que o Coelhinho da Páscoa ou o Papai Noel poderiam não vir tão inspirados. Ou
mesmo poderiam não vir. Ouvia meu pai falando que eu não precisava me
preocupar, como ele, com as suas “duplicatas” a pagar. Ele tinha razão;
preposições essenciais, tabela periódica e fórmula de Baskara eram minhas
maiores preocupações naquela época. Talvez não ter meu amor platônico pela
menina mais desejada da sala de aula retribuído também.
A adolescência não foi fácil. Encarar pais separados (eles reataram
seis anos depois, gente) ao lado de uma irmã que pela primeira vez parecia pensar
muito diferente de você foi uma tarefa bastante, digamos, ingrata.
Mesmo assim, vivia ainda longe das maiores preocupações do
mundo adulto.
Hoje, imerso em um mundo cada vez mais intolerante, lidando
com dificuldades que ciclicamente sempre existiram em nosso país (mas nunca me
exigiram diretamente, pois ainda tinha as confortáveis asas dos meus pais para
proteger), às vezes me pego pensando em todos os perrengues que enfrentei
durante a minha infância e que, ainda assim, minhas ocupações eram brincar, ser
um bom aluno e um bom filho. Como era mais fácil lidar com a vida entre o
sorriso triunfal de chegar ao céu em uma amarelinha e o choro ardido de um
Merthiolate...
Como seria mais fácil simplesmente entrar naquele táxi com
aquela loira (ou aquelas loiras, porque a minha irmã certamente iria comigo) e
falar para o motorista: leve-nos pra Latibom!
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Paulo Henrique Brazão, nosso colunista oficial das quartas-feiras, é niteroiense, jornalista e autor do livro Desilusões, Devaneios e Outras Sentimentalidades. Recém chegado à casa dos 30 anos, não abre mão de uma boa conversa e da companhia dos bons amigos.
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