Anteontem, minha vó Lourdes fez
90 aninhos. E tal qual uma Mrs.
Dalloway, do famoso livro de Virginia Woolf, me preparei para produzir uma festa
à noite. Foi aí que lembrei de seu
carrancudo pedido para que nunca a surpreendêssemos com surpresas ou parabéns;
afinal ela “nunca teve um aniversário” na vida. Obviamente, aquela afirmação era um charminho peculiar, pois repetidas
vezes, a família se reuniu para comemorar a data. Mas fiquei matutando e tentando entender o
que significava para ela um aniversário.
Minha avó praticamente não teve
infância. Desde muito pequena trabalhava em casa de família e, aos 14 anos, já estava casada com meu avô, um
militar da Marinha, mulherengo como ele só. Também não teve festa de debutante: aos 15 anos já tinha uma filha para
criar. Ao todo, teve cinco filhas que
lhe deram 10 netos, 7 bisnetos e muitas histórias para contar. Em muitos
momentos de minha vida, foi ela que tomou a frente de minha educação e criação.
Por isso, todos os dias, quando ela vai até minha cama me acordar para eu
trabalhar e faz questão de preparar minha torrada quentinha, agradeço por ter a
oportunidade de tê-la ao meu lado.
E, parodiando Raul Seixas, apesar
de não ter “nascido há dez mil anos atrás”, se olharmos para o seu passado,
noventa anos é quase uma epopéia. Minha
avó nasceu no mesmo ano em que o filme Metrópolis, de Fritz Lang, foi
lançado! Sobreviveu à epidemia de gripe
e tuberculose, viu o nazismo de Hitler crescer pelo mundo e o terrível
Holocausto nos campos de concentração para os judeus. Viu a prisão de Luís Carlos Prestes e sua
esposa Olga Benário; viu o prefeito-interventor do Rio de Janeiro, Pedro
Ernesto, legalizar as escolas de samba e oficializar os desfiles de rua. Viu o primeiro desfile oficial das
agremiações, com a Portela sendo campeã. Viu a quebra da Bolsa de Valores de Nova York e o acidente com o
dirigível Hindenburg.
Viu Getúlio Vargas desferir um
golpe de estado fundando o Estado Novo; a extinção de todos os partidos
políticos e a queimada das bandeiras estaduais. Vivenciou o movimento
integralista com o ataque ao Palácio do Catete e também o suicídio do
presidente no próprio local. Viu o drama
da Segunda Guerra Mundial, o ataque à Normandia no Dia D; o bombardeio de
Hiroshima e Nagasaki e a Guerra do Vietnã. Viu o Muro de Berlim ser construído e ser destruído. Chorou com a tragédia do Grande Circo em
Niterói e sofreu com a ditadura.
Soube do incidente em Roswell, mas
nunca acreditou em extraterrestres, mas sempre achou que os gols e dribles de
Pelé, Garrincha e Tostão eram coisas de outro mundo. Viu o Brasil perder a Copa para o Uruguai em
pleno Maracanã. Ficou fascinada quando viu
a TV ser fundada e Brasília ser construída. Chocou-se com o assassinato de Kennedy, escandalizou-se com o rock
rebolativo dos Stones, as franjas dos Beatles, a Bossa Nova, a Jovem Guarda, a
Tropicália e duvidou que um dia o homem tenha pisado na lua.
Muitas vezes, quando chego
exausto do trabalho, lá está ela, lavando roupa, arrumando casa, passando roupa
ou arrumando as compras... Os afazeres que me deixam mais cansado só de
observar. Invejo sua força e fico feliz quando, mesmo com nove décadas de vida,
a vejo fazendo tantos planos e tendo um senso crítico tão apurado que podem
atirar para o lado da política, do futebol, das novelas, da cultura, da
situação econômica do país ou até mesmo da vizinha fofoqueira ao lado.
Observadora ao extremo, ela é
daquelas pessoas que todo mundo acha que está dando uma enrolada. Mal sabem que
ela, que não é boba nem um pouco, só falta fazer o “ráááá´... pegadinha do malandro!”
pra quem pretende dar uma volta nela. Perspicácia é seu sobrenome. Experiência
é seu nome.
A noite chega e observo seu
olhar. Ela sorri e batendo as mãos,
ratifica, como que quisesse fazer uma comprovação notória: “viu? Eu cheguei aos noventaaaaa!”. Tal qual a festa de Clarissa em Mrs. Dalloway,
tudo é um sucesso. Personagens parecem
chegar a todo o tempo em sua cabeça. Noventa anos, passado e presente. E o futuro? Alguém sugere cantar
os parabéns e ela nega.
Aí entendo tudo. A tradição do “apagar de velas” nunca fez
parte de sua vida. Os gregos a acendiam sob
o bolo redondo simbolizando a lua e ofereciam à deusa Ártemis. Ao soprar, a fumaça das velas levava as
preces ao céu, para garantir sua proteção na nova idade.
Pois então... Ela chegou até aqui
sem um único pedido. Vivenciou tantos e
tantos momentos. Sorriu, sofreu, chorou,
gargalhou de novo. E, mesmo com os
passos mais cansados, continua sorrindo, sofrendo, chorando e gargalhando de
novo e de novo. Assim como eu. Assim como você.
Então, que assim seja.
Então, que assim seja.
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6 comentários:
Um senhora vida sua avó teve, mais um ano de vida é sempre motivo para comemoração, gostei da referência ao filme As Horas.
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Parabéns, vó! Exemplo de Vitalidade! Saúde sempre!
Nossa avó é a minha inspiração! Parabéns, Vó Lourdes!!
Emocionante, me fez chorar, é muito bonito seu carinho e reconhecimento, parabéns!!!
Parabéns! Que essa vitalidade se reproduza por muitos anos! Me fez lembrar da minha bisavó que faria 100 anos esse mês, mas descansou ano passado! Admiro muito essas mulheres que em meio a dificuldades financeiras, falta de conhecimento, preconceitos e tantos conflitos vividos na sociedade, tiveram punhos de ferro para educar seus filhos, netos, administrar um lar, dando o melhor com os recursos que possuíam!
Que texto bárbaro!! Uma reflexão sobre a vida e fatos da humanidade. Isso tudo fragmentado dentro de 9 décadas. Tanta vida. Muitas lutas, mas também alegrias infinitas. Parabéns vó. Depois de tantas batalhas, olhar para trás, sorrir e ter a certeza de que tudo valeu a pena. Feliz aniversário!!! Beijos e beijos...
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