Essa semana estava ensacando os
doces de Cosme e Damião que todos os anos a minha avó distribui e fiquei divagando
enquanto separava as balas, mariolas, geleias e bombons entre cada
saquinho. Por um momento, relembrei minha
infância como se fossem projetados fotogramas envelhecidos, riscados e
amarelados na minha mente, sujos pela memória e pela crueldade do tempo.
Quando criança, sempre morei em
subúrbios e no dia de Cosme e Damião era muito comum o corre-corre das crianças
atrás de doces. A maratona começava
cedo: eu e meus dois irmãos mais novos colocávamos as mochilas nas costas e
íamos os três, de mãos dadas, atrás dos saquinhos. Naquela época, praticamente todos os vizinhos
faziam a distribuição. Alguns eram mais
caprichados, outros nem tanto. Tinham uns
que previamente entregavam uns cartões, que eram a senha para o passe-livre... Era quase uma área vip à glicose. Os que
davam doce “com cartão” quase sempre vinham acompanhados de brinquedos bacanas.
Havia um vizinho, que se não me
engano, era dono de uma loja. Todos os
anos ele fazia uma big-festa no dia 27. Cedinho,
as crianças já se aglomeravam em frente sua casa e quase todo mundo saía de lá
com bolas, bonecas, carrinhos e até bicicletas.
Bons tempos em que almoçávamos suspiros e pés-de-moleques e voltávamos
para casa ao entardecer com as mochilas abarrotadas e equilibrando os
brinquedos nos braços. Minha mãe já nos
aguardava com aquelas panelas imensas e, depois de tomarmos um bom banho,
fazíamos uma espécie de catalogação do que havia sido “arrecadado”: balas e
jujubas eram colocadas em um lado, doces de abóbora e cocadas em outro monte e marias-moles
(que sempre odiei) em mais um outro.
Depois, arrumávamos tudo direitinho nas grandes panelas que serviam como
despensas para quase um mês de guloseimas, que devorávamos após às refeições
como sobremesa.
Com o passar do tempo, fomos
crescendo, nos tornando adolescentes e aquela sombra de bigodinho na cara já
era uma forma para alguns vizinhos barrarem a nossa entrada, outrora
liberada. “Você já ta grande
demais! Só criança pequena ganha!”,
diziam alguns, me causando um desapontamento.
Alguns dos vizinhos, na camaradagem, davam aquele sorrisinho de canto de
boca e liberavam por já sermos conhecidos.
“Cresci só no tamanho, mas continuo sendo criança!”, protestava, ao longo
dos meus 14 anos.
E assim fui sendo criança para
sempre.
A minha avó, desde que “me
conheço como gente”, sempre distribuiu doces.
Eu a ajudava a distribuir os saquinhos quando morávamos na Penha e os
meninos da Vila Cruzeiro digladiavam-se com os bracinhos tentando chamar a
nossa atenção por entre as grades do portão de ferro. De vez em quando minha avó dava um sonoro
esporro nos moleques que só faltavam socar a cara um do outro em busca dos
doces. “Se vocês ficarem brigando eu
paro a distribuição agora mesmo!!!!”, dizia, aos berros, fazendo com que eles “ficassem
pianinho”. Os espertinhos sempre vinham
com aquela marota “me dá mais um pro meu irmão pequeno???”. Ih, mas minha vó,
esperta como ela só, nunca caía nessa não.
Vovó sempre distribuiu doces no
dia 26 de setembro, que é a data onde é comemorado o dia de São Cosme e Damião
pela Igreja Católica. Na história
cristã, os gêmeos nasceram na Arábia por volta do ano 260 e foram estudar na
Síria, se especializando nas ciências e medicina, quando começaram a tratar
pacientes sem cobrar nada. Na época em
que o imperador Diocleciano iniciou a perseguição contra os cristãos, os dois,
acusados de praticar feitiçaria, foram presos, torturados e condenados à morte. Por conta do sincretismo religioso com os
orixás ibejis no candomblé e umbanda (onde a cerimônia acontece dia 27 com a
distribuição de bolos, balas e doces nos terreiros), a tradição popular vinculada
às guloseimas prevaleceu e quase todo mundo festeja no dia 27 mesmo.
Atualmente, com o crescimento de
outras religiões, principalmente as evangélicas, surgiu um impasse. A cada ano que passa, minha avó leva mais
tempo para distribuir os doces pois as crianças, provavelmente orientadas pelos
pais, são proibidas de receber os saquinhos,
já que acreditam que a oferta está relacionada a uma oferenda aos orixás. Eu acho engraçado, pois minha avó, por
exemplo, nunca fez promessa nenhuma. Ela
distribui os doces porque gosta de ver no rostinho de cada criança a alegria
delas. Sempre foi assim, desde que (como
já disse) “me conheço como gente”.
No meu tempo não tinha esse mimimi. Se eu tivesse que entrar num
terreiro pra ganhar doce, ia feliz da vida.
Não “tava nem aí”; e inclusive os distribuídos nos centros eram até mais
gostosos, pois não eram industrializados.
Tinha “bolo de verdade”, cocada com côco mesmo e não só feita de açúcar
e ainda me entupia de guaraná Tobi.
Obviamente, aquele clima de festa
nunca mais vai voltar. A cada ano que
passa, a tradição vai diminuindo. Os
doces de abóbora em formato de coração não tem a mesma graça; quase não
encontramos mais o famoso cocô-de-rato e aquela melecada gostosa que nos fazia
ficar com lombriga até a alma está sendo substituída por doces embalados, diet
e sem glúten. Estamos entrando na era de
Cosme e Damião fitness... Mas num clima
de nostalgia, só tenho a agradecer por ter passado por aqueles momentos felizes
em que eu e meus irmãos corríamos atrás daqueles saquinhos. Abrir e descobrir o que tinha dentro de cada
um sempre era uma surpresa que, infelizmente, não tem mais espaço nos dias
atuais.
Até hoje, a minha avó guarda o
meu saquinho. Aquele rostinho lisinho
que foi sendo transformado por uma leve penugem e um bigodinho safado, hoje tem
uma grande barba, mas ainda assim, por esses momentos que se perpetuam, fui
sendo criança para sempre.
Leia Também:
Um comentário:
Minha infância tem muito da história que contou! Embora tímida, adorava me juntar a irmãos e primos para pegar doces!
Postar um comentário