No meu primeiro livro há um
pequeno conto chamado As horas, em que eu observo como as pessoas vão perdendo
suas referências quando a velhice chega.
Há um determinado momento que vamos nos tornando sozinhos com a perda dos
amigos e parentes que construíram nossa referência. E assim, com nossa história e experiência,
vamos nos tornando referências para outras pessoas e assim por diante, um
eterno F5.
Hoje vou escrever pouco. Queria escrever um texto cheio de
referências, mas tenho notado que a cada dia que passa, as tenho perdido. E antes que você me chame de solitário, eu já
digo que isso não é verdade. Tenho muitos amigos. E só estou triste hoje pois estou cansado...
Essa semana fiquei meio atordoado
com aquele massacre na Somália. E o que
mais me deixou desnorteado foi perceber que a porra de um movimentozinho de
merda, de um bandozinho de aspirantes a politiquinhos medíocres e tão
incompetentes quanto os atuais, tem mais alcance nas redes com comentários
histriônicos e hipócritas de uma população que se incomoda com um homem
nu. Um bando de gente imbecil que
confunde uma propaganda de Polenguinho com uma referência ao disco The Dark Side Of The Moon, do Pink
Floyd, com a bandeira LGBT! Uma
população que acha que o Sargento Pimenta é somente um bloco de carnaval! Dê à
população pão e circo! Panis et circenses! Dêem a eles um mês de promoções no
supermercados Guanabara, uma goleada do time do coração no campeonato carioca e
um feriadão prolongado com sol. A quem
importa um massacre de centenas de negros, pobres, muçulmanos e africanos?
Je suis Somalia? Pra quê
colocar isso na timeline? Vamos esconder
esse banho de sangue, pois dá muito mais Ibope linchar em praça pública um
Caetano, uma Fernanda Montenegro, uma Adriana Varejão. “Não
somos homofóbicos, apenas queremos que nossos filhos sejam homens ou mulheres,
o que há de errado nisto?” brada um descerebrado. Outro, semianalfabeto, escreve em letras
garrafais “se na escola do meu filho
levar essa pornografia pra ele ver sem minha atorização....eu prosseço”.
Sinceramente, tenho pena. Essas pessoas nunca saberão que interesses
existem por trás de um país africano fragmentado onde já morreram mais de 1
milhão de pessoas em pouco mais de 25 anos.
Um país que sofre desde a Guerra Fria e que está no meio de um jogo entre
potências e a exploração do petróleo.
Sempre ele.
Tenho pena dessas pessoas. Elas nunca conseguirão compreender a força de
um poema como Strange Fruit,
escrito por um professor judeu sobre o linchamento de homens negros na década
de 1930. Não saberão que esse poema foi
imortalizado por magníficas interpretações de Billie Holiday e Nina Simone,
duas mulheres negras e Siouxsie, uma ex-punk neogótica.
Enquanto essas pessoas não captarem
que toda essa incompreensão transformada nesse câncer chamado preconceito
continuar existindo, negros continuarão tendo sua pele dilacerada; corpos
continuarão explodindo em regiões de conflito; mulheres continuarão sendo
espancadas por animais na sua casa ou no próprio trabalho; homens públicos continuarão
escravizando e tirando direitos do povo; políticos influentes continuarão tendo
seus cargos e posições blindadas; doenças negligenciadas continuarão com essa
nomenclatura; mosquitos do século XIX continuarão dizimando sonhos; gays
continuarão sendo assassinados à luz do dia ou “passeando pelo lado selvagem”
das grandes metrópoles.
Tenho pena das pessoas que não se
tornam referências para ninguém. A
velhice está chegando e o que será delas quando finalmente partirem? Quem colocará as moedas sob seus olhos para
pagar o barqueiro Caronte e, assim, atravessar sua alma através do rio que
separa os mundos?
Tic-tac, tic-tac, tic-tac,
tic-tac... a areia continua caindo, grão
por grão. As frutas estranhas continuam
sendo produzidas... Tic-tac, tic-tac, tic-tac... O cheiro de carne queimada
continua se espalhando... As horas não cessam.
O tempo não para. Tic-tac,
tic-tac, tic...
Árvores do sul produzem uma fruta estranha
Sangue nas folhas e sangue nas raízes,
Corpos negros balançando na brisa do sul,
Frutas estranhas penduradas nos álamos.
Cena pastoril do valente sul,
Os olhos inchados e a boca torcida,
Perfume de magnólias, doce e fresca,
Então o repentino cheiro de carne queimando.
Aqui está a fruta para os corvos arrancarem,
Para a chuva recolher, para o vento sugar,
Para o sol apodrecer, para as árvores derrubarem,
Aqui está a estranha e amarga colheita.
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3 comentários:
Ah, Marcos... É um cansaço tão grande! Mas textos como esse seu dão um pouco mais de energia. Obrigada!
Sinto que vivemos um "Holocausto" pós moderno em que as pessoas suncumbem a ideias tendenciosas, sem sequer parar pra pensar se teriam um pensamento diferente daquilo tudo que tem sido "plantado". Talvez seja mais fácil, lá na frente, dizer que a culpa foi dos "Hitlers" da vida - não os eximindo, absolutamente, de suas ações - porque assim, fica mais fácil justificar o apoio ignorante a tudo que vem acontecendo no mundo. Como se esse apoio, da sociedade insana e egoísta, não fosse a mola propulsora para a catástrofe e segregação humana que temos vivido. Parabéns, mais uma vez, pela sua sensibilidade 😢
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