Sabe aquelas revistinhas religiosas
A Sentinela, publicada pelas Testemunhas de Jeová? Recentemente descobri que elas existem desde
1879 e são distribuídas em 334 línguas, com tiragem de 70 milhões de
exemplares, sendo a revista mais publicada em todo o mundo. Então vou aproveitar e contar um segredinho
pra vocês: eu tinha verdadeiro pavor daquelas capas. Tinha um medo absurdo. Eu me tremia todo só
de imaginar que pudesse existir um mundo tão perfeito com aquelas cores
contrastadas... Aquelas paisagens campestres somente com pessoas alegres
convivendo com leões e outros animais como pandas e coelhos falantes.
Na minha cabecinha infantil eu já
discordava que o mundo não poderia ser assim tão perfeitinho, asséptico e
imaculado, sem tristezas ou decepções. E
tampouco gostaria de conviver com elefantes, zebras e rinocerontes no meu
quintal, tal qual uma Alice no País das Maravilhas, conversando com lebres e
gatos sorridentes. Ao mesmo tempo que aquilo
tinha um lado mágico e surreal, também possuía uma morbidez disfarçada. Aterrorizante, diria. Mais tarde, na adolescência, ao descobrir as
obras do pintor holandês Hieronymus Bosch, acabei realizando algumas associações
com as famosas capas das revistas.
Um dos quadros de Bosch que mais
me impressionaram na adolescência foi o tríptico O Jardim das Delícias
Terrenas, que descreve a história da criação, no contexto religioso. De um lado, o paraíso – Adão, Eva e Deus no
meio de um cenário como nas revistinhas – elefantes, girafas, javalis, pássaros
e unicórnios; o inferno – com criaturas bizarras, instrumentos musicais gigantescos,
objetos cortantes, fogo, escuridão e a aura de escárnio e, na parte central,
uma visão da Terra em si, com figuras celebrando os prazeres da carne e da
luxúria, sem culpa. O tríptico, quando
fechado, apresenta a transcrição ele mesmo ordenou e tudo foi criado.
Atualmente, dá até para
realizarmos uma terceira associação – vale ressaltar que a grande maioria das obras
de Bosch também tinham esses três ângulos – com o mundo atual. Estamos vivenciando uma nova onda onde esse
mundo utópico e clean está sendo idealizado na cabeça de algumas pessoas... Um
mundo perfumado, livre de corrupção.
Indivíduos que utilizam-se de uma armadura verde-amarela e vão para as
ruas conversar com tucanos, patos e sapinhos.
Aquele velho mundo das capas de revista A Sentinela, sem cocô de
cachorro pelas ruas, com aquele sol pairando nos risonhos e lindos campos e
bosques com mais flores e vida.
Abram o quadro. Admirem-no.
Analisem direitinho. Aquele
inferno de Bosch, com as grotescas e obscuras figuras de pecado e tentação
estão ali, atrás do jogo de luzes e sombras, mas nem tão escondidas assim. Só não enxerga quem não quer ver.
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