Hoje eu queria fazer um pequeno desabafo com um certo pesar e queria deixar no ar um questionamento para todos vocês, meus leitores: afinal, até onde vai nosso preconceito?
Vivi uma situação muito constrangedora essa semana e gostaria de compartilhar aqui com vocês. Por um acaso, encontrei um amigo que tenho muito carinho, em Botafogo. Há algum tempo não o via e o chamei para tomar um café e colocarmos o papo em dia. Eu tinha acabado de sair do trabalho e, mesmo cansado, conversamos bastante. Esse meu amigo é um daqueles jovens superdotados: tem um QI elevadíssimo, fala várias línguas, discute filosofia, história da arte, antropologia, é ator, superdescolado e com uma conversa agradabilíssima.
Por mais de uma hora discutimos sobre filmes do Bergman, cinema asiático, a situação política do país, bolsas da Capes, mestrado, doutorado, projetos de pesquisa, adversidades em morar no exterior e ele me confidenciava sobre a felicidade e os desafios de seu recém casamento.
Papo vai, papo vem, nem percebemos que o shopping já estava fechando. Descemos e fomos em direção ao metrô. Na esquina, ele colocou a mão sobre meus ombros e se despediu com um abraço apertado. Estava atrasado para buscar a esposa e correu sorrindo pela rua acenando e com aquele discurso de carioca: “temos que marcar algo de novo para continuarmos a conversa!” até desaparecer de minha vista.
Imediatamente um homem se pôs ao meu lado. Percebi que ele já estava me seguindo desde o interior do shopping. Me deu boa noite e meio ressabiado, respondi secamente “boa...”. E, o que ouvi depois, me deixou muito triste.
- Aquele jovem que estava com você...
- Hã... sim...?
- Eu vi que ele estava com você no shopping. Ele te fez algo? Ele queria te assaltar?
- Assaltar? Como assim?
(acho que o indivíduo caiu na real depois da pergunta cretina)
- Opa, desculpe, eu só queria ajudar... É que hoje a gente vê muita coisa estranha e achei que...
(nesse momento o cortei, ríspido e completei a frase...)
- ...achou que só porque ele é negro, estava de chinelos e não estava assim como eu, todo “engomadinho” que era um assaltante em potencial?
Acho que nesse momento, meu olhos encheram-se de água. Fiquei trêmulo e ao mesmo tempo em que o cara tentava se desculpar por ter falado aquela bobagem, também aumentava a voz quase em um tom grosseiro, justificando um ato quase “vingador”.
Em segundos passaram alguns flashes na minha cabeça... Dos olhares enviesados dos clientes na cafeteria, da desconfiança dos lojistas... E minha ficha caiu... É muito triste constatar que, em um país onde a maioria de sua população é mestiça ou negra, ainda exista esse preconceito idiota.
Tem político por aí dizendo que o país não tem dívida histórica com a escravidão. Fingir que não existiu esse passado por séculos é a mesma situação que apagar a história do holocausto e da perseguição aos judeus na Alemanha nazista.
Pra quem faltou às aulas ou não entende de história, mais de 5 milhões de africanos foram migrados involuntariamente, capturados e trazidos para o Brasil durante o primeiro ciclo da cana de açúcar, quando o país era colônia de Portugal, no século XVI. E mesmo depois da abolição, os negros não tinham para onde ir. Muitos se sujeitaram a continuar trabalhando para seus senhores em troca de moradia e um prato de comida. Qual foi a forma de inclusão social aí neste período?
Outro dia li um artigo que mostrava o resultado de uma pesquisa em que a participação percentual da população branca no Brasil caiu de 46,6% para 44,2%, enquanto a participação dos pardos aumentou de 45,3% para 46,7% e a dos pretos, de 7,4% para 8,2%. Até o Censo 2010, os brancos representavam mais da metade da população e naquele ano, pretos e pardos ultrapassaram devido a fatores como a própria miscigenação e, no caso do aumento da autodeclaração de pretos, existe o reconhecimento da população negra em relação à própria cor, que faz mais pessoas se identificarem como pretas. Mas dentro desse discurso político racista e por essa situação em que vivi esta semana, muitas vezes me sinto num trem desgovernado. É um retrocesso absurdo. Um retrocesso social, cultural, antropológico... Tá tudo muito errado.
E, enquanto isso, muitos amigos nossos, negros, estarão aí sofrendo o mesmo olhar reprovador sem poder dividir momentos em uma cafeteria em um shopping da zona sul ou sem poder dar um abraço mais afetuoso em uma esquina qualquer.
A opinião dos colunistas não representa necessariamente a posição editorial do Barba Feita, sendo estes livres para se expressarem de acordo com suas ideologias e opiniões.
2 comentários:
Aquele nosso racismo institucional e estrutural. Eu ja passei por algo parecido em pleno RioSul.
Triste realidade do nosso Brasil... Belissimo texto!!
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