Há uma canção do Titãs que pouca
gente conhece mas eu adoro. Ela está
presente em um dos discos mais recentes da banda (o ótimo Nhengatu), se chama Terra à Vista e narra em versos tropicalistas e folclóricos toda a mistura no
liquidificador da cultura brasileira.
“Terra à vista! / Tem palmeiras, sabiás,
mulatas ainda não / tem pau-brasil a dar com o pau / como dizia Cabral / tem
coqueiro que dá côco / tem mangueira que dá caju e tem Popó do Maculelê / tem
caça, cabaça, cachaça, trapaça / mordaça, arruaça, vidraça / desgraça, raça,
pirraça / caça, cabaça e cachaça / mordaça, arruaça, vidraça / desgraça, raça,
pirraça / e índia cheia de graça”.
Aprendi na escola o que o governo
ditatorial gostaria que eu aprendesse. Me
ensinaram a história romântica de Cabral se perdendo no meio do oceano e desembarcando
em terras desconhecidas, com belas índias virgens dos lábios de mel. Esconderam-me todo o lado podre dos
interesses e corrupção que existe desde 1500 e que transformou esse Brasil em
um país misógino e preconceituoso. E
esse outro lado só fui descobrir após ler Gilberto Freyre. O tijolão Casa-Grande Senzala ocupou
durante muito tempo minha cabeceira e minha autocrítica.
Na minha época infanto-juvenil, meus
cadernos eram encapados com plástico transparente azul pois não podíamos esconder,
no verso, o Hino Nacional ou o Hino à Bandeira.
Não tinha caderno com capa de Hello Kitty, Garfield ou imagens de
guitarras multicoloridas. Se você era
diferente, certamente era ridicularizado.
Vivíamos uma espécie de adestramento burocrático e opressor, sem
exercitar a sensibilidade, tal qual os alunos no filme musical Pink Floyd, The
Wall, sem rosto, padronizados e marchando em fila até caírem em um grande
moedor de carne.
Talvez, se minha geração tivesse
sido mais autônoma, certamente seria mais crítica e enxergaria além do
óbvio. Vim de uma geração que
praticamente foi inerte na política. Uma
geração que entendeu a redemocratização como um grande oba-oba; um eterno
Cassino do Chacrinha com dançarinas e um maiô atochado. Confundiram liberdade de expressão com zona e
demoraram muito para poder reivindicar os seus tantos direitos previstos na
Constituição concebida após 21 anos de ditadura militar.
Esse mês comemoraremos 30 anos da
aprovação da Constituição Cidadã e, infelizmente, o que vejo a cada dia é um
retrocesso àqueles anos de chumbo anteriores à abertura política. Há algumas semanas estava discutindo com
alguns amigos a questão política brasileira.
Confesso que ultimamente venho debatendo bastante esse tema, seja em
chás-de-bebê, aniversários, barzinhos, trabalho etc e tal. Felizmente, as conversas tem sido sempre
respeitosas, pois, entendo que o processo democrático existe exatamente para
isso: respeitarmos as ideias, mesmo que sejam completamente divergentes às
nossas.
Venho de uma família de
militares, nasci em época ditatorial de Geisel e vivi na pele o horror que foi
esse período. E atualmente a população tem defendido muito o retorno do
militarismo (leia-se ditadura) por impor a tal "ordem" descrita na
bandeira. Para estas pessoas, nunca
existiu corrupção dentro do meio militar.
Não conseguem compreender que toda a fachada era totalmente bloqueada
pelo sistema. Inexistia a possibilidade
de estarmos como estamos agora, aqui, discutindo esse assunto publicamente.
Na mesma semana, outra amiga,
defensora de Bolsonaro, reclamava que no passado não existia tanto essa questão
de lutas de classes, divisão de raças e opções sexuais. E novamente vi o quanto Gilberto Freyre ainda
continua atual. Aliás, Freyre e
Maquiavel nunca estiveram tão na moda!
Deveriam estar debaixo do braço de cada brasileiro. Estava dialogando com ela que esse embate
social sempre existiu! Só que
antigamente, essas “minorias” que alguns candidatos querem que novamente se
curvem, não possuíam voz.
Dados do IBGE apontam um
crescimento da população negra/parda. Houve miscigenação? Claro! Mas
principalmente, eles tiveram coragem de se declarar negros/pardos! Isso não
acontecia há 20 anos atrás! Em relação aos gays/héteros, obviamente as
agressões e mortes sempre existiram, só que hoje incomodam muito mais pois os
gays que eram sempre marginalizados, ganharam status em vários degraus.
Há 20, 30 anos atrás, gays assumidos
nunca podiam ter cargos de destaque em uma empresa. Ou você conheceu algum sendo diretor de alguma
empresa? Gays assumidos sempre eram estilistas ou cabeleireiros. Não existia um gay motorista de ônibus, um
gay empresário, um gay artista que não fosse afetado. Ou seja, eles existiam, mas viviam no
armário. O surgimento da AIDS foi o primeiro fato para fazer com que os gays
assumissem os seus papeis... Atores hollywoodianos "machões" e galãs
globais assumiram a homossexualidade... Rock Hudson, Cazuza, Renato Russo,
Freddie Mercury, Lauro Corona, entre tantos outros. Por isso não se discutia essa “divisão”. Não
existia voz para gays não assumidos. Ou
ricos e pobres... Ou brancos e negros.
E quem propôs essa “divisão”? O governo?
Claro que não! O que o governo fez (e precisa continuar fazendo) foi
propor políticas públicas para as mulheres, os negros, os gays... Quem propôs
essa divisão fomos todos nós. Nós e
nossos preconceitos enraizados desde 1500. Nós e os preconceitos obscuros de quem tem
ódio de dois pais que cuidam de uma criança.
Do jovem negro da comunidade que tem acesso garantido a uma universidade
onde 90% é branca e rica. Do diretor
supercompetente que vive com seu companheiro.
Da mulher que comanda um grupo de homens em uma multinacional.
Aqui, a miscigenação tomou
conta. Ainda existem palmeiras e sabiás,
mas pau-brasil sobraram poucos. Tem
coqueiro que dá côco e, se duvidar, até mangueira que dá caju. E tem Popó do Maculelê. Ah, mas ainda tem muita caça, cabaça,
cachaça, trapaça, mordaça, arruaça e desgraça.
Pouca coisa mudou.
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