Para morrer? Basta estar vivo!
Bem óbvia essa informação, eu sei. Só que o meu receio sempre foi o meio do
caminho. Entre viver a vida e morrer existe todo um percurso que pode dificultar
o que parece óbvio. Ninguém imagina como vai morrer. Ao menos não é muito comum
ficar fazendo planos para nossa morte. Idealizamos viagens que queremos fazer,
coisas que queremos aprender ou empregos que queremos conquistar. Tudo bem que, às
vezes, quando perco o sono até penso em como posso acabar morrendo. Sofrer um acidente
de carro é o mais recorrente nessa minha lista. Mas como moro no Rio de
Janeiro, nunca se sabe, a lista pode ser mais surpreendente.
Só que nada me assusta mais do
que as surpresas que a própria vida coloca em nosso caminho. Quando uma doença
chega sem aviso e vai te matando aos poucos. E de uma extensa lista de
possibilidades, existe uma que morro de medo: Alzheimer.
Lembro até hoje quando ouvi falar
sobre essa doença pela primeira vez. Era pequeno. Não mais uma criança, mas
também não se pode dizer que já estava na adolescência. Era pequeno e lembro
que minha mãe me explicou que a memória de uma senhora conhecida da gente
estava confusa. E que, às vezes, ela voltava ao passado nas próprias lembranças e
não sabia muito bem onde estava e nem com quem estava. E aquilo me assustou. Veja
bem, assisto Doctor Who e amo a ideia de viagem no tempo, mas isso não inclui essa
ideia da sua mente viajar e seu corpo ficar inerte e você se vendo perdido sem
saber onde está. Acho assustador. Sempre achei.
Pouco tempo depois dessa
explicação simplista sobre o Alzheimer, essa senhora faleceu. E acho que foi a
primeira vez que encarei o ciclo da vida como justo. Por muito tempo ela era
uma viajante no tempo, sem espaçonave, mas que parecia um zumbi boa parte do
tempo. Não conseguia formar novas memórias e nem reconhecia mais quem estava ao
seu redor. Algo no passado estava sendo sua âncora. E cada vez mais ela ficou
presa por lá...
Anos depois, quando assisti ao
piloto de Grey’s Anatomy e vi Meredith tendo que internar sua mãe, uma famosa
cirurgiã, por conta dessa mesma doença, esse meu medo retornou. Elis Grey
revivia constantemente seus anos iniciais na medicina e se mostrava
completamente infeliz quando se via por algum tempo no presente, ao constatar
sua realidade.
Quando me aventurei em um sebo da Tijuca, estava em busca de um autor brasileiro. E me deparei com Boa Noite a
Todos, quarto livro do jornalista – e meu xará – Edney Silvestre. Uma novela e uma
peça de teatro juntas, sobre o mesmo tema: o de uma mulher, Maggie, cuja
memória começa a esfacelar. Fiquei intrigado com a ideia de ter reunidos a
prosa e o roteiro da peça em um só lugar. Sem nem pensar duas vezes, comprei o
livro.
Admito que fiquei encarando por
semanas o livro em minha mesa de cabeceira. Antes li a peça Um Limite Entre
Nós, que virou filme com Viola Davis e Denzel Washington, mas sempre pousava
meus olhos em Boa Noite a Todos. Separei mais alguns livros que estão em minha
lista, mas me enchi e coragem e iniciei minha jornada pelo maravilhoso mundo de
Maggie. E fui arrebatado. Não só pelas lembranças daquela mulher misteriosa, mas
pelo quebra cabeça que juntar as informações que ela fornecia ao que era
verdade ou poderia ser a verdade, ou só parte do que ela desejava ser a verdade
sobre sua vida.
Na novela temos essa mulher e um
narrador que a contradiz e nos deixa em dúvida sobre aquilo que lemos. Será
mesmo que ela teve um caso com o cunhado, dirigia um carro azul, ou seria
verde? Mas ela sabia mesmo dirigir? Essas inconstâncias de informações,
dramaturgicamente são fascinantes e Edney Silvestre soube fazer poesia como
ninguém, utilizando uma doença tão triste e solitária como o Alzheimer.
A peça não é em nada diferente da
novela, mas um grande monólogo em que uma brilhante atriz é capaz de encarar e
fazer desse um grande papel de sua carreira. Imaginei Cristiane Torloni (que
fez a leitura do texto na Fliporto de Recife em 2012) dando vida para essa enigmática
mulher. Mas também pensei em Drica Moraes, Fernanda Torres, Virginia Cavendish
e tantas outras atrizes fantásticas e brilhantes do nosso cenário nacional, que
podem (ironicamente) dar vida ao momento em que Maggie decide dar o seu adeus.
E foi lendo essas duas versões da
mesma história que percebi que existem formas mais intensas e brutais de
morrer, mesmo que aconteça aos poucos no início, até que na velocidade da luz,
acaba deixando um corpo vazio quase sem alma, só uma mente flutuante.
Morrer é um ponto final para o
sofrimento, certo? Ao menos é o que
algumas pessoas dizem. Nesse caso específico, prefiro pensar que é meramente uma
questão de justiça. Divina ou não. Mas uma maneira digna de encerrar um ciclo e
sem se lamentar por isso.
Leia Também:
![]() |
|
Silvestre Mendes, o nosso colunista de quinta-feira no Barba Feita, é carioca e formado em Gestão de Produção em Rádio e TV, além de ser, assumidamente, um ex-romântico. Ou, simplesmente, um novo consciente de que um lance é um lance e de que romance é romance.
|
|
![]() ![]() |
A opinião dos colunistas não representa necessariamente a posição editorial do Barba Feita, sendo estes livres para se expressarem de acordo com suas ideologias e opiniões.
Nenhum comentário:
Postar um comentário