Me recordo até hoje, Valesca, da primeira
vez em que escutei falar no grupo da Gaiola das Popozudas. Isso foi lá no longínquo
ano de 2004! Para você ter uma ideia, nessa mesma época também estava em minha
jornada de descobertas. E não só sexualmente falando, mas também como
consumidor cultural. Talvez pelo meu ascendente ser em aquário goste de
conhecer o diferente, o que não se encontra no discurso comum ou tão facilmente
em músicas de outros artistas. Isso naquela época, claro.
Ainda falando em 2004, a Gaiola era
o que de mais transgressor existia entre o mainstreaming e underground carioca, mas você sabe disso, né? Talvez tenha sido pela coragem ou pelas letras provocantes, mas a verdade é que
me conectei com a ideia do grupo e adorava toda aquela proposta: mulheres mostrando
toda sua forma de sensualidade e cantando um funk em que elas eram as protagonistas,
as que “mandavam na parada”.
Para ser bem honesto, nunca
entendi muito bem essa sociedade castradora que não permite à mulher falar
sobre o próprio corpo ou formas de sentir prazer. No final, acaba sendo vista como
uma pessoa suja e errada só por admitir que gosta de uma boa e velha putaria
entre quadro paredes – ou até fora dela. Pra mim, sexo é sexo. Ponto e acabou.
Não se divide entre coisas que homens podem admitir e mulher não. Isso não tem
que acontecer. Não mais, por favor.
E por conta das letras sexuais ou
pelas roupas “provocantes” que vestia, cheguei até a perder as contas de
quantas vezes sua postura como artista, mulher e mãe foi questionada. Pedras
foram lançadas sem dó e nem piedade e você continuou ali com o seu trabalho.
Fazendo o que acredita e evoluindo a cada dia. Com muitas críticas e pontuais
elogios no meio desse caminho, você continuou evoluindo.
E as pessoas de hoje, essa mesmas que consumem música pop como se não houvesse amanhã e defendem suas bandeiras sem medo do julgamento ou até esperando por ele, podem não ter uma ideia que de 2004 até 2010, a Gaiola e você eram uma
potência em termos de repercussão. Seja pelo cunho sexual e até, acredito que
posso falar assim, pela percepção da mulher como dona do próprio corpo. Um
pré-feminismo, talvez? Pode ser, mas aí já não é nem meu lugar de fala e nem o objeto dessa minha análise.
O que eu quero dizer com tudo
isso? Foi você, Valesca, que entoou um hino chamado Agora Eu Tô Solteira (Agora Eu Sou Piranha
em sua versão proibidona) e ganhou uma popularidade jamais imaginada para o ano
de 2007/2008. Esse funk tocou com toda sua potência dos confins da Zona Oeste carioca
até a cobertura mais cara da Zona Sul desta cidade. Não existia uma festa, gay
ou hetéro, em que os versos entoados por você não ecoassem nos
ouvidos e fossem replicadas a plenos pulmões por todo o público ali presente.
Se ainda não era nessa altura,
você entrou oficialmente para o grupo LGBTQI+ lá no já distante ano de 2011.
Mesmo sem ter a mínima ideia, você militou ao dizer a seguinte frase: “Prefiro
ter um filho viado do que um filho marginal”. Essa mesmíssima frase foi replicada
durante anos, mas de forma totalmente inversa. Geralmente proferida por um
homem sobre ter o filho gay, homossexual, viado. Isso nunca foi questão para se
ter orgulho. O filho poderia “até ser” ladrão, mas não seria viado nunca. Jamais...
Podem imaginar o quanto ouvir isso, dito por um familiar, já não machucou por
aí? Amigos próximos derramaram lágrimas com declarações como essa, com seu
conteúdo bem similar e nunca superaram ouvir isso proferido pelo pai ou mãe.
Mas quando você, uma das figuras que
mais foram apedrejadas desde que apareceu na mídia, disse com todas as letras
que teria orgulho do filho, independentemente de sua orientação sexual, acabou sendo vista por muitos como uma esperança...
Sei que para uma boa parte das
pessoas, com o uso da linguagem do politicamente correto, pode até soar ofensiva
a palavra viado, mas também podemos ressignificar esse mesmo uso, não podemos?
Afinal, fizemos isso com a expressão poc... Talvez esteja na hora da gente
tirar o peso negativo daquilo que nunca deveria ter tido... Mas isso é assunto
para um próximo texto e não o objetivo dessa carta.
Para alguns, Valesca, pode parecer que a sua saga estava chegando ao fim e sua aceitação como cantora e artista já
era sacramentada, o que nessa época ainda estava bem longe de acontecer e você continuou constantemente sendo vítima de todo tipo de comentário maldoso, seja sobre a
maneira de se vestir, sobre o modo como abordava determinados assuntos. Sua
presença incomodava muito os defensores da moral e dos bons costumes deste belíssimo
país (contém ironia).
Mas faltou pontuar um preconceito
recebido pela área intelectual, que foi à loucura quando em uma prova de
filosofia, você, que já era tida como “polêmica”, foi chamada de
Pensadora Contemporânea. Não preciso nem dizer que o apocalipse quase aconteceu
em algumas esferas acadêmicas. Foi um tremendo bombardeio sobre a qualidade do seu
trabalho e toda sua obra produzida até então. Os ataques, desta vez, foram
feitos pela parte de intelectuais...
Mas foi assim, dia após dia,
aprendendo com os acertos e erros que você conseguiu o que de mais valioso
pode existir em um grupo de minoria e também militância: o respeito. Se em
épocas que cantores sentem medo de se manifestar politicamente, esse receio sempre
passou bem longe da sua postura.
E aqui que quero chegar ao tema
dessa longa carta aberta. Fiquei durante boa parte do final de semana pensando
sobre o fatídico vídeo que você fez em defesa de seu suposto amigo. Preciso fazer
o uso dessa palavra – suposto –, porque não acredito que a pessoa em questão
possua um vínculo de amizade verdadeira com você. Afinal, se tem algum feito recorrente
por parte dele nos últimos meses, com toda certeza foram os ataques com muito
tom de deboche contra a comunidade LGBTQ+, mesmo ele fazendo parte deste mesmo
grupo – querendo ou não.
Talvez você até não tivesse ideia
da sua força dentro da comunidade LGBTQ+, mas pode ter certeza que o seu “suposto
amigo” sabia muito bem o tamanho dessa percepção. Valesca, você pode não ter notado,
mas sempre ocupou certo destaque dentro desse seleto grupo de artistas que não
fazem parte diretamente, mas que possuem uma espécie de carta
branca para falar sobre a causa LGBTQ+. E ao usar dessa força para tentar
defender alguém que fez da própria imagem e propriedade de fala (para tentar diminuir toda sua luta e causa), acabou sendo vista como uma espécie
de traição.
Na vontade de ajudar um amigo você
colocou o que tinha de mais precioso no lixo: a confiança e admiração daqueles que o
seu amigo fez questão de fazer chacota durante longos meses. Só agora em que
o bolso do seu amigo começou a sofrer com isso, que ele decidiu dar uma apelada para uma amiga que conversa direto com a comunidade que ele quis e quer continuadamente deslegitimar.
Veja bem, Valesca. Das eleições até
aqui, muitos membros da comunidade LGBTQI+ abriram os olhos para o tipo de
artista em que se joga confete. Você, por outro lado, em nenhum momento deixou de dizer o que
pensava sobre o que acontecia e se colocou ao nosso lado. Não acho, por
exemplo, que tenha votado em determinada pessoa. Esse tipo de atitude não
combinaria em nada com você. Com a pessoa que você é. Até mesmo porque ele não é só
contra essa minoria na qual faço parte, mas é contra as mulheres que possuem o
mesmo tipo de pensamento que você. Nós somos os alvos...
Dito isso tudo, acho que você
acabou sendo mais uma vítima nessa tentativa desenfreada de deslegitimar a causa
e fazer com que todos pareçam loucos raivosos e desenfreados. Valesca, você tentou
ajudar o seu amigo, que só vem arcando com consequências dos
próprios atos. Veja bem, nem dois dias depois de te jogar na cova dos “leões” já
estava lá passando mais uma vergonha e se envolvendo, mais uma vez, com esse governo que
só quer promover a desinformação e o surto coletivo.
Assim como toda relação, acho que
leva um tempo para algumas feridas cicatrizarem e as coisas seguirem para um
novo momento. Acho que lá no futuro isso tudo pode vir a ser bem positivo pra
você e pra gente também. Temos que ser mais próximos daqueles que são membros
da comunidade e que produzem música, clipes, cultura e sofrem por serem LGBTQI+. E acredito muito que você vai amadurecer mais como pessoa pública e avaliar melhor o que te
pedem, até usando a sua amizade como uma forma de favor... Já que, amigo que é amigo não usa a imagem
do outro para limpar a própria barra, não é mesmo?
Fique bem e vamos todos juntos nessa caminhada.
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Silvestre Mendes, o nosso colunista de quinta-feira no Barba Feita, é carioca e formado em Gestão de Produção em Rádio e TV, além de ser, assumidamente, um ex-romântico. Ou, simplesmente, um novo consciente de que um lance é um lance e de que romance é romance.
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A opinião dos colunistas não representa necessariamente a posição editorial do Barba Feita, sendo estes livres para se expressarem de acordo com suas ideologias e opiniões.
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