Já posso ouvir o som dos
repiques. A cidade está mais brilhante e
nossos passos, mais agitados. Chegamos a
mais um início da festa mais bacana do ano, o maior espetáculo da Terra. Daqui até quarta-feira, a cidade para e, o
que já era Torre de Babel se mescla ainda mais.
Momo comanda a folia e, por mais que você não seja um entusiasta, sempre
terá uma boa lembrança envolvendo confetes e serpentinas.
Todo mundo que me conhece sabe o
quanto eu sou um eterno apaixonado por Carnaval. Digo que sou um roqueiro-sambista, com
louvor. Uma de minhas primeiras memórias
remetem ao desfile da Beija-Flor de 1978, A criação do mundo na tradição
nagô, com os homens negros da comissão de frente fazendo uma apresentação
tradicional, o carro abre-alas minúsculo para os padrões das agremiações de hoje
e mulheres seminuas sambando em cima.
Hoje isso é algo normal, mas naquele fim da década de 1970, era inédito
(e escandaloso).
Naquele ano a Beija-Flor foi consagrada tricampeã. Já tinha desbancado “as quatro grandes” (Mangueira, Império Serrano, Portela e Salgueiro) em 1976, com a estreia do genial Joãosinho Trinta com um enredo polêmico sobre o jogo do bicho.
Para uma escola que sempre foi
vista como anã e com enredos militares de extrema-direita que exaltavam políticos
e a história do Brasil da forma que a ditadura gostaria que fosse contada, foi
uma guinada de 180 graus. Ousadia sempre
foi a palavra de ordem na escola de Nilópolis e, talvez por isso, me tornei seu
grande fã, pois fugia da mesmice.
O pequeno João 30 sempre foi um
visionário. Dizia que a Sapucaí era o
maior palco do mundo. E que por ela passava um cortejo de milhares de atores nos quatro dias de folia. Sempre imaginou uma avenida coberta, com
luzes especiais e uma produção hollywoodiana.
Um dia, quem sabe, os desfiles deverão ser projetados da forma que ele
idealizou, assim como coisas que achamos corriqueiras: alas teatralizadas,
resplendores, verticalização da ótica do desfile, carros alegóricos gigantescos
e luxo, muito luxo.
Em uma de suas frases mais
conhecidas, o grande carnavalesco dizia que “o povo gosta de luxo. Quem gosta de miséria é intelectual”. Com sua criatividade infinita, Joãosinho
transformava lixo em luxo. Sobras de
isopor em marfim. “Reluziu... é ouro ou
lata?” era a primeira frase do lendário desfile Ratos e urubus, larguem minha
fantasia, de 1989; aquele apoteótico desfile do Cristo coberto com um plástico
preto e com a frase “mesmo proibido, olhai por nós”. Um desfile dentro de um desfile. Duas comissões, vários casais de mestre-sala
e porta-bandeiras, um abre alas esfarrapado, fantasias rasgadas, mendigos
invadindo banquetes e a diretoria (e o carnavalesco) com uniformes de garis. Uma revolução na estética dos desfiles. Talvez o vice-campeonato mais injusto da
história do Sambódromo (naquele ano a Imperatriz Leopoldinense ganhou da
Beija-Flor por 0,5 ponto com um desfile morno visualmente falando, mas com um
sambão clássico - o conhecido Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós!).
Ah, Sapucaí... Avenida de sonhos,
de tragédias, de gritos, choros, sorrisos e explosões. Não consigo imaginar um outro lugar que
congregue tantas emoções tão intensas em um único local. Ali, bem
no início quando a sirene toca e a bateria invade o setor 1, o pelinho do braço
arrepia. As detonações dos fogos de
artifício se projetam nos olhos dos componentes, que choram copiosamente. Um trabalho de um ano inteiro que precisa cruzar
os 700 metros de extensão em puro êxtase, canto, exaltação, sangue, suor e
libertação.
Joãosinho Trinta sempre afirmou
que o Carnaval é o nosso único momento de realidade. Durante os demais 360 dias do ano somos
personagens de nós mesmos, mas nos quatro dias de festa, mostramos o nosso
verdadeiro rosto.
“Vá você fazer o carnaval de uma
escola de samba no morro e pedir pro crioulo sair de escravo, ele te manda à
merda... Porque escravo ele já e o tempo todo. Ele gosta é do luxo, ele quer
ser príncipe e princesa, que na verdade, ele é e foi e tem direito de continuar
a ser”, dizia o mago.
Portanto, sejamos quem quisermos
ser. Momo já invadiu a cidade. Liberte-se e viva quem você é, de verdade.
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A opinião dos colunistas não representa necessariamente a posição editorial do Barba Feita, sendo estes livres para se expressarem de acordo com suas ideologias e opiniões.
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