Nunca deveríamos ficar remoendo coisas ruins, mas muitos dos acontecimentos desagradáveis precisam ser
lembrados o tempo inteiro para que eles não se repitam. Infelizmente, o brasileiro é um povo que peca
pela falta de memória. Insistimos nos
mesmos erros, há sempre o falado “jeitinho” e ainda dizem que nada acontece de
ruim pois Deus é brasileiro. Acontece
que Deus deve estar com muitos outros afazeres, ou então, já deve estar de saco
cheio, como diria Almir Guineto.
Essa semana que passou deveria
ser riscada da nossa história? Deveria
ser apagada de nossa memória? A resposta
é não. Precisamos deixá-la viva dentro
de nós para que nunca nos esqueçamos dela, mesmo que pareça (e é) uma tortura,
pois só assim estaremos mais alertas para que possamos cobrar de quem quer que
seja, ou somente para que estejamos mais atentos para nossas próprias atitudes.
A semana começou desastrosa com o
inacreditável ataque do Exército contra o carro de uma família em Guadalupe a caminho de um chá de bebê. O
motivo? “Confundiram” o veículo com um
que havia sido roubado por bandidos. Aí,
como num joguinho de Counter Strike, dispararam 80 tiros. Oitenta!
Imediatamente me recordei de uma
crônica de Clarice Lispector chamada Um grama de radium – Mineirinho que, em
um trecho, aponta a crueldade e o exagero em um assassinato:
“...mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.”
Em uma entrevista, anos mais
tarde, a escritora diria que “qualquer que tivesse sido o crime dele, uma bala
bastava. O resto era vontade de matar. Era prepotência”.
Evaldo dos Santos Rosa, de 51
anos, era um músico. Um cidadão que morreu
na frente de seu filho de sete anos, sua esposa, uma amiga e seu sogro. Luciano Macedo, um outro cidadão que sobrevivia
nessa cidade catando sucatas está em coma.
Também foi atingido no peito por um dos 80 tiros. Seu crime foi tentar ajudar a família. E os atiradores só estavam com pura
prepotência da vontade de matar.
Na segunda-feira, a tragédia veio
de cima. Mas que poderia ter sido
amenizada se as pessoas aqui em baixo tivessem cumprido o seu papel. Desde 2015, obras de drenagem e contenção de
encostas estão paradas, mas o prefeito culpa o aquecimento global e a corrupção
como os grandes vilões da enchente que assolou o Rio de Janeiro nos últimos
dias. Dez pessoas morreram. Cidadãos com histórias, sonhos e planos para
cumprir.
Guilherme Nascimento comemorava
seu aniversário de 30 anos. O dia já
tinha até passado, mas ele tinha chamado uns amigos para um churrasco quando a
carne acabou e saiu para comprar mais.
No caminho até a Rocinha, foi surpreendido pela força das águas. Sua mulher, a filhinha de 1 ano e os
convidados ficaram aguardando seu retorno.
A chuva não cessou e Guilherme não voltou.
Em Santa Cruz, um dos locais mais
atingidos, Leandro Ramos, com a ajuda da namorada e da irmã dela, tentava
salvar os móveis da enchente. Foi
eletrocutado enquanto tentava desobstruir um ralo. Em uma rede social, um recado “a vida é uma
só”.
Vidas que foram tiradas como a D.
Lucia Neves e de sua netinha Julia de 6 anos, que saíam de um aniversário no
shopping Rio Sul. Menos de 10 minutos
dali, o taxi foi atingido por uma pedra e lama, que despencou na Ladeira do
Leme. O motorista, Marcelo Tavares,
também não resistiu. Um sinal de GPS fez
com que amigos e parentes, sem a ajuda de equipamentos, começassem a cavar com
as próprias mãos a terra que cobria o veículo.
Esperança e frustração.
Longe daquele caos em que o Rio
de Janeiro se transformou, a ministra da Agricultura Tereza Cristina defendia a
liberação de quase uma centena de novos produtos elaborados com agrotóxicos. E ainda disse que o brasileiro não passa
muita fome porque “temos muita manga nas
nossas cidades”.
Também houve o discurso do novo
ministro da Educação em uma ode ao “combate aos comunistas”, que seriam os
detentores do poder no país.
“Os comunistas são o topo do país. Eles são o topo das organizações financeiras; eles são os donos dos jornais; eles são os donos das grandes empresas; eles são os donos dos monopólios.”A fala é um plágio do mesmo discurso segregacionista de Hitler. É só substituir “comunista” por “judeu”. Mas aí dirão que foi coincidência. Alguém ainda acredita que hajam coincidências na política?
Política essa que o próprio
presidente não quer que os jovens discutam. “Queremos uma garotada que comece a não se interessar por política, como
é atualmente dentro das escolas, mas comece a aprender coisas que possam
levá-las ao espaço no futuro”, disse durante a mesma cerimônia de posse do novo
ministro. O presidente, como todos
sabem, entranhou na política todos os seus filhos. Meninos que poderiam sonhar em serem
astronautas um dia.
Nenhuma palavra sobre os fatos
aqui descritos foram mencionados. Silêncio. Uma mudez constrangedora. Mas não esqueçamos dos tiros que silenciaram
inocentes e o descaso que afogou vidas. Espero
humildemente que possamos entender um pouco mais de Clarice para que sejamos “mais
divinos e adivinharmos em nós a bondade”.
“Enquanto os homens exercem seus
podres poderes, morrer e matar de fome, de raiva e de sede, são tantas vezes
gestos naturais”. Que os “hermetismos
pascoais, os tons, os mil tons, seus sons e seus dons geniais” nos salvem
dessas trevas.
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A opinião dos colunistas não representa necessariamente a posição editorial do Barba Feita, sendo estes livres para se expressarem de acordo com suas ideologias e opiniões.
Um comentário:
Poxa Marcos ,infelizmente esse foi o relato real de uma semana. Até quando vamos ver pessoas arriscando a vida por causa de chuva e até quando vamos sair sem saber se vamos voltar?. Quanto a ter manga para matarfome, precisamos é que parem de roubar para termos direito a comida e não ter governantes que nos explorem e só enchem o bolso deles. O povo precisa tbm ser mais educado, mas com essa politica que temosfica dificil muitas coisas. Enfim parabéns por suas palavras e espero que todos parem p ler e refletir.
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