Apesar de causarem certa repulsa
em muita gente, adoro assistir filmes de terror, pois o gênero consegue revelar
parte do reflexo dos medos que a sociedade enfrenta. Desde os primórdios, sempre foi assim. O Gabinete do Dr. Caligari (1920), por
exemplo, é um filme de horror categorizado na estética do expressionismo alemão
que evidencia o regime totalitário nazista, através das luzes, sombras,
cenários tortos e a manipulação dos personagens.
Com o fim da Segunda Guerra,
também surgia o medo dos conflitos entre EUA e União Soviética na Guerra Fria e
a ameaça nuclear, gerando produções com invasões alienígenas e monstros
japoneses como Godzilla.
Também tinha os clássicos personagens
serial killers, na grande maioria vencidos pela força feminina devido ao empoderamento
do gênero – Freddy Frueger (A Hora do Pesadelo), Jason Voorhees (Sexta-Feira
13), Michael Myers (Halloween), Chucky (Brinquedo Assassino) e Hannibal
Lecter (O Silêncio dos Inocentes), para relembrar alguns.
Alguns outros já tiveram remakes
em épocas distintas e o discurso se adequou perfeitamente com o reflexo que a
sociedade vivia naquele momento como no ótimo Invasores de Corpos, que já
teve umas 4 versões e que, no original, mostrava nitidamente o sectarismo
anticomunista americano durante o período conhecido como macarthismo –
caracterizado pelas insinuações, acusações sem prova e entreguismo. Outra versão já apontava o medo da AIDS, que
também ganhou contornos similares na segunda versão de A Mosca (1986) enquanto
o original, de 1958, esboçava o tema kafkiano do medo da transformação.
Em 2017, Get Out (Corra!, no
Brasil), foi o primeiro lançamento do diretor Jordan Peele nas telonas. E, de cara, se tornou um sucesso,
principalmente por ter concorrido ao Oscar em várias categorias importantes
como melhor filme, diretor, ator e roteiro.
O filme, com um quê satírico e até cômico, compôs uma nova forma de
abordagem para contar uma história de terror e suspense com a grande sacada da legitimação
da fala das pessoas negras. Corra! tratava explicitamente sobre o racismo e o olhar preconceituoso dos brancos sobre
a tão falada vitimização.
Essa semana assisti o segundo e
tão esperado filme de Jordan, chamado Nós (Us, no original) e saí do cinema
chocado. Fiquei impressionado por
comprovar o quanto os filmes de terror continuam, cada vez mais, sendo uma
grande alegoria sobre a política e a sociedade atual.
Nós é um longa para se assistir
várias vezes, pois não tem como prestarmos atenção nas centenas de referências que
ele joga na tela. Protagonizado pela
ótima Lupita Nyong’o, Winston Duke, Elisabeth Moss e Tim Heidecker, o
filme conta a história do casal Adelaide (Nyong’o) e Gabe (Duke), que viaja com
o casal de filhos para uma casa de veraneio e lá são surpreendidos com uma
cópia de sua própria família com comportamentos psicopatas e se tornam reféns
de seus próprios clones-vilões.
Há metáforas em vários sentidos
diferentes. Podemos entender que as
cópias são nossa própria parte do mal, como se a referência simbólica das
tesouras que cada vilão carrega fosse esse exemplo: duas partes iguais, porém opostas e usadas
como arma. Os coelhos podem ser
explicados como uma referência à entrada do mundo subterrâneo e inexplicável
como o de Alice no País das Maravilhas – que inclusive ganha uma fala icônica: “somos
todos loucos aqui”; o experimento científico ou a analogia com a internet – o submundo
dos labirintos-subterrâneos x a reprodução (viralização) das ideias. As cópias não poderiam ser nosso lado mais
obscuro trabalhando da forma mais cruel nas redes?
As cópias não poderiam ser as
classes negligenciadas pelo governo, relegadas à base da pirâmide social? Reparem que em várias cenas as “sombras”
tocam objetos como o aveludado das cortinas ou a sensação de um cosmético
labial como se fosse a primeira vez que estivessem descobrindo aqueles elementos. Isso mostra que eles nunca teriam como
crescer ou se comportar dentro de um ambiente social – todas as cópias, exceto
a cópia de Adelaide (que tem uma explicação, mas obviamente não darei spoiler)
não sabem falar. Só grunhem e são
abobalhados, como se fossem zumbis.
Seriam esses seres a classe esquecida e ávida por vingança?
O filme também mostra a
polarização dos discursos bem evidenciada pelo governo Trump. O próprio título faz uma brincadeira Us pode ser interpretado como United States.
A simbologia do ser “invasor” e desconhecido é evidenciada em uma
fala: quando Adelaide e sua família encaram as cópias em sua própria casa e
questionam “quem são vocês?”, a “sombra” responde “somos americanos!”. Peele já tinha comentado sobre essa
desconfiança que ronda o imaginário das pessoas durante uma sessão de perguntas
no SXSW.
“Estamos em um momento em que temos medo do outro, seja este outro o misterioso invasor que pode nos matar ou tomar nosso emprego, ou a facção que não mora perto de nós e que votou diferente nas eleições. Talvez o mal seja nós. Talvez o monstro para quem estamos olhando tem a nossa própria face.”
Outro assunto incluído no filme
como uma forma alegórica é a campanha Hand Across America, que realmente existiu
em 1986, como um braço do USA For Africa – aquela do We Are the World. O Hand Across America tinha também um
conceito beneficente e em um dia D juntou mais de 6 milhões de pessoas que
seguraram as mãos em uma fila humana durante 15 minutos representando um futuro
melhor (aqui certamente dirão que é uma referência ao “Ninguém solta a mão de
ninguém”, certamente). Naquela campanha,
cada pessoa deveria doar US$ 10 e ganhar uma camiseta (usada pela personagem no
filme). Essa grana seria revertida para
ações contra a fome, só que mais da metade do dinheiro arrecadado precisou ser
utilizado para custos operacionais. Ou
seja, uma ação que não levou pra lugar nenhum, pois o objetivo não foi
cumprido. No filme, a explicação é
semelhante: as sombras ocupam o lugar
dos outros através da violência, se unem na corrente e, no fim das contas, não
vão conseguir absolutamente nada, pois são incapazes de pensar, enxergar ou
dialogar.
A cena final, com o menino
colocando a máscara de Chewbacca é também um recado e um questionamento: afinal, qual lado é o bom? E qual é o ruim? Estaríamos, portanto, vivendo em sociedade paranóica,
hipócrita e “de aparências” à beira do colapso e do próprio precipício que causaria sua
destruição?
Que venham mais filmes assim,
pois nossa sociedade precisa urgentemente retirar essas máscaras.
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A opinião dos colunistas não representa necessariamente a posição editorial do Barba Feita, sendo estes livres para se expressarem de acordo com suas ideologias e opiniões.
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